Uma breve análise crítica
sobre o Neo-realismo Italiano:
Uma Nova Consciência
Cinematográfica
Iremos iniciar este texto com uma visita aos filmes O homem da Câmara de Filmar (1929) do cineasta Dziga Vertov, e a obra de Walter Ruttman Berlim – Sinfonia de uma Grande Cidade (1927). Estas duas obras, pioneiras no modo como a realidade é mediada e re-apresentada (de modo técnico) através da câmara de filmar[1], foram, também, vanguardistas na maneira de enquadrar o real[2]. Arriscamos, então, a seguinte proposição: Se a essência do trabalho de Dziga Vertov foi uma resposta crítica ao cinema burguês americano e à burguesia em geral, e o filme de Ruttman, uma metaforização visual puramente humanista da urbe, Roma Cidade Aberta, e o neo-realismo italiano, poderá, então, ser encarado como uma consequência destas duas obras. Ou seja, as realizações de Vertov e Ruttman iluminaram, de certa forma o trajecto para o neo-realismo italiano.
Comecemos a nossa viagem pelo princípio basilar do cinema[3]: A imagem e modo como nós, espectadores, percepcionamos o que é projectado na tela. Vinte e quatro imagens por segundo é quanto basta para ficarmos maravilhados com a sucessão de planos que decorrem de uma construção imagética esboçada pelo cineasta.
O cinema, na sua génese, habitava uma espécie de ideal normativo, no qual a objectiva, por ser objectiva e isenta de qualquer tipo de “preconceitos” , capturava e reproduzia a percepção natural. Esta pressuposição inicial, que poderemos conotar como cândida, é constitutiva de um entusiasmo primordial, muito devido ao cariz mágico do cinema. Rudolph Arnheim em Film as Art (1957) rebate a comparação da seguinte maneira: «The limitations of a film picture and the limitations of sight cannot be compared because in the actual range of human vision the limitation simply does not exist.» (Arnheim, 1957: 16-17). Acrescentamos que logo na tomada de vista a delimitação espacial, quer da câmara de filmar, quer na projecção, colocam em quadro algo que nós percepcionamos em “aberto”. Outro aspecto que poderemos mencionar, dentre outros, será por exemplo a noção de bidimensionalidade.
Com a emancipação do dispositivo técnico[4], o cinema “libertou-se”, e de imagens em movimento, passámos para um movimento outro: a imagem-movimento[5]. «[...] o plano deixará de ser uma categoria espacial para tornar-se temporal; [...].» (Deleuze, 2004: 14). Ou seja, de um movimento abstracto, resultado de cortes imóveis, para um corte móvel enquanto apreensão imediata da consciência. Na óptica deleuziana o que o cinema coloca então em perspectiva é um movimento sobre outro movimento. Deste modo a noção de corte móvel, não é um espaço percorrido, mas o acto de percorrer – uma duração. Reforçamos esta observação recorrendo ao Manual de Filmologia (2007) de João Mário Grilo: «Essencialmente, uma imagem-movimento é uma imagem relativa e dinâmica que não só pensa as relações entre as coisas (e os seus movimentos) dentro de um conjunto fechado (enquadramento) como se esforça por pensar as relações desses conjuntos entre si, e de todos eles perante uma totalidade que, por definição, permanece Aberta (o papel da montagem).» (Grilo, 2007:31)
Esta abertura, relação entre parte e todo, é a espinha dorsal do cinema. Razão pelo qual Serguei Eisenstein descreveu a montagem como o Todo do filme – a Ideia[6]. Ou seja, o modo como os fotogramas se interligam e relacionam, expressam uma totalidade que vai além do plano informativo ou simbólico. Há um terceiro sentido, que Roland Barthes tão bem aponta[7], que surge da tessitura de e entre imagens. E é nesta relação de montagem - conflito entre imagens (e nas imagens) – e formulação fílmica, que direcionamos a nossa atenção para o filme O homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov.
O Homem da Câmara de Filmar é um manifesto da visualidade maquínica através da própria montagem. É a própria percepção visual e o estabelecimento de um ponto de vista que se constituí numa meta-narrativa fragmentada. Para além de Kino-eye (1924), que está mais direccionado à lógica da propaganda, a experiência sobre a própria forma plástica do filme irriga toda a obra de Vertov e remete para uma ideia de montagem, mas também uma certa visualidade, um formalismo essencial. O cineasta soviético insere-se aqui, para nosso interesse, porque é mesmo disso que trata o surgimento de uma nova consciência. A imagética de Dziga Vertov além de nos confrontar directamente com as nossas limitações visuais - a percepção humana não consegue por si só apreender a totalidade da vida e do trabalho – apresenta, também, todo um campo de possibilidades para onde a câmara pode, objectivamente, apontar. Este filme inovador traz à fruição aquilo que o cinema deveria ser. E fá-lo também indicando para um horizonte que o cinema potencialmente traz ao homem: Uma nova percepção do mundo que, apenas a máquina poderia decifrar – um mundo desconhecido até então[8]. Nas mãos de Mikhail Kaufman, a câmara nunca é estática, e desloca-se por onde nenhum olho humano tinha chegado – nas chaminés, nos carris do comboio, de ângulos inusitados, no alto das pontes, etc. Por meio de explosões contínuas e de artifícios cinematográficos – velocidades de câmara variáveis, efeitos split-screen, uso de lentes prismáticas e montagem firmemente estruturada – O Homem da Câmara de Filmar move-se fora do storytelling de Hollywood e coloca-se mais perto de uma linguagem absoluta do cinema. É um caleidoscópio de imagens que, através da montagem, esquarteja a realidade. Não há já nada dentro de um plano que tenha princípio meio e fim, tudo é: puro movimento.
De puro movimento, objectivado pela câmara, passamos a uma esteticização da metrópole. Contrapondo com a obra de Vertov, Berlim – Sinfonia de uma Grande Cidade exibe uma visão citadina onde a câmara se coloca à distância dos seus sujeitos, como que um predador envergonhado da sua própria condição natural: capturar imagens. No entanto, mesmo recorrendo a princípios de montagem da escola soviética, este filme de 1927[9], estrutura-se pelas suas características iminentemente documentalistas. Walter Ruttmann aponta a sua câmara para a vida urbana sem ter qualquer intenção ideológica. E, contrário a Vertov, que critica o cinema orgânico burguês, Ruttmann inscreve esta obra numa espécie de catalogação do real. A cidade é um placo, e os transeuntes tornam-se actores amadores. Este documento histórico reporta à distância[10] a vida urbana enaltecendo de certa forma a sociedade: O homem, arquitectura, máquinas, lazer e trabalho, tudo se compõe melodicamente, criando uma partitura visual onde o conjunto de estímulos, produzidos fotograficamente, realizam um todo altamente humanista. O que está em evidência nesta obra é esse quadro melódico, mas acima de tudo estético sobre a existência do homem. Filmado entre guerras e perto da grande crise financeira, além de um retrato da cidade de Berlim, é também uma série fotográfica do real, edificando-se como uma espécie de álbum de família global.
Recorremos a André Bazin em What is Cinema (1967) para apontar esta noção de realismo fotográfico: «The realism of the cinema follows directly from its photographic nature. Not only does some marvel or some fantastic thing on the screen not undermine the reality of the image, on the contrary it is its most valid justification.» (Bazin, 1967: 108). É a fotografia e a sua relação paradoxal[11] que valida o realismo. E esta validação conotada, é fruto de uma teorização do cinema nos anos 20 do século passado. Mas, como todo o fruto que amadurece e se decompõe para dar origem a uma nova geração, a elaboração de um pensamento teórico só voltou a surgir nos anos 40/50 com Bazin e Kracauer[12].
O cinema como uma espécie de subtracção do real, não têm como propósito fundador a narração de uma história, mas, a produção de efeitos. Retomando as noções da Escola Soviética, quer seja um cine-murro, ou uma miríade de cine-olhos, a intenção primeira da 7ª arte é atingir o espectador de modo provocar algum efeito – entreter, despertar, expandir a visão, etc. O aspecto narrativo, que decorre deste intento, é apenas um dos elementos constitutivos do cinema. E foi seguindo esta prioridade fílmica que o neo-realismo se desacoplou do cinema clássico americano – onde a imagem-acção reinava.
João Mário Grilo cita Rossellini: «As coisas estão aí, para quê manipulá-las» (Grilo, 2007: 153) – analisando bem estas palavras, podemos considerar, que a realidade como ela é percepcionada pelo homem – de forma limitada, carregada de empatias e apatias, uma experiência subjectivada – é mais rica que o cinema de ficção. O real é já bastante fecundo de fingimentos e dissimulações. E o que o neo-realismo italiano veio colocar na grande tela foi isso mesmo: A vida é bela com todas as suas cores. O encanto burguês é uma farsa que só existe no campo da ideologia.
E longe de iludir o espectador, o que o neo-realismo pretendeu, foi confrontar o espectador com a real feição das coisas.
Cesare Zavattini, um dos pioneiros da teoria do neo-realismo italiano, afirmava que o filme ideal era aquele que iria mostrar hora e meia da vida de um homem, onde nada se passava. No entender de Zavattini, o neo-realismo deveria ser, antes de tudo, uma «estética da rejeição», contra os pilares do cinema clássico e o studio-system.
Gilles Deleuze afirma o seguinte acerca do surgimento desta nova concepção de cinema, em resposta à pretensiosa hegemonia do cinema clássico americano: «[...] por um lado dispunha de uma instituição cinematográfica que tinha relativamente escapado ao fascismo, por outro lado podia invocar uma resistência e uma vida popular subjacentes à opressão, se bem que desprovidas de ilusão. Era preciso apenas, para o apreender, um novo tipo de «narração» capaz de compreender a elíptica e o inorganizado, como se o cinema tivesse de partir do zero, pondo em questão todas as aquisições da tradição americana.» (Deleuze, 2004: 279-280).
O evidência colocada na insurreição do neo-realismo, visava criar um corte político com o passado de modo a colocar o cinema ao serviço da sociedade e das consciências. Desta forma, invocando a responsabilidade social dos cineastas na denúncia das injustiças e na reconstrução de uma Itália verdadeiramente democrática. O requisito do realismo no cinema resultava da convicção de que só a verdade seria útil ao homem e deste modo invocar a mobilização solidária dos espectadores perante a situação de atribulação dos seus semelhantes. Daí a preferência dada ao retrato do homem comum em situações comuns.
O neo-realismo, nesta perspectiva, deverá ser encarado como uma tomada de consciência. Uma crítica social e política. Uma redescoberta humanista reconfigurada pela consciência dos cineastas italianos e re-enquadrada pela câmara de filmar. Já não estamos perante um caleidoscópio de imagens, nem perante um distanciamento puramente óptico e objectivo, mas o resultado de toda uma nova consciência fílmica.
Tornando-nos espectadores da obra de Rossellini, Roma Cidade Aberta, damos conta que se tratou de uma espécie de necessidade espiritual, sem haver consciência dessa necessidade. Talvez uma necessidade social, já que nessa altura não havia condições financeiras[13] para filmar nos estúdios. O pós-guerra suscitou uma nova paixão reveladora de uma nova forma de fazer cinema. Um cinema verdadeiro, transportado pela poesia visual e lírica. E foi por causa deste lirismo que o neo-realismo cativou tanta gente. É patente o lado poético na realidade projectada por este estilo.
Roma Cidade Aberta, pura evocação do neo-realismo italiano, poderá ser narrado como a antítese daquilo que retrata: a guerra. À ausência de humanismo e à cega dependência de ordens ditadas pelo regime opressor, o neo-realismo responde - como um todo, como um terceiro sentido que não é imediatamente apreendido - com um verdadeiro retrato humanista, através da imagem social que desenha. E também exige a distância de uma certa autoridade que deixou de estar presente ao filmar nas ruas com recursos limitados; e até a ausência de argumento. Podemos considerar a montagem de Roma Cidade Aberta feita no próprio local de filmagens. A magia do neo-realismo italiano está nesta plena devoção humanista aos problemas sociais que fazem questão em acompanhar a humanidade desde o princípio dos tempos. Rosselini deu uma ideia visual de como as coisas são na realidade. Não era a estética mas o que está por detrás das coisas, a ideia das coisas, a essência da vida social.
Se por um lado o neo-realismo foi a tomada de consciência sobre as atrocidades sociais do pós-guerra, e encarando também o neo-realismo como uma crítica ao cinema americano, o que está em causa é a elaboração de uma estrutura simbólica de poder. Ou seja, a instituição de símbolos. Ao que recorremos à passagem de Jean-François Lyotard em O Inumano Considerações sobre o Tempo (1997):
«Quando procuramos apresentar que existe algo que não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação. Isto significa que os pintores e o público, entre outros, não dispõem de símbolos estabelecidos, de figuras ou de formas plásticas, os quais permitiram significar e perceber que se trata, na obra, de Ideias da razão ou da imaginação, como foi o caso na pintura cristã romana. Não pode haver, no mundo tecno-científico e industrial, símbolos estáveis do bem, do justo, do verdadeiro, do infinito, etc. são estes «realismos», - os quais são, realidade, academismos burgueses no fim do século XIX, socialistas e nacional-socialistas durante o século XX – que tentam reconstituir simbólicas, oferecer ao público obras que este poderá saborear e diante das quais se poderá identificar com Imagens (raça, socialismo, nação, etc.). Sabemos que este esforço sempre exigiu a eliminação das vanguardas. Estas levam a cabo um trabalho secreto de interrogação dos pressupostos «técnicos» da pintura, os quais as levam a desprezar completamente a função «cultural» de estabilização do gosto e de identificação de uma comunidade, por meio de símbolos visíveis.» (Lyotard, 1997: 129)
Ou seja, as imagens (simbólicas), são sempre encaradas como uma construção cultural. E a proposta do neo-realismo é a desconstrução de um simbolismo capitalista e fascista. Uma revolução social preconizada pela câmara de filmar: que decorre em décors reais, preferencialmente nos locais onde decorreram os eventos trágicos – algo presente em Roma Cidade Aberta – a utilização de não-actores, ou actores amadores caldeados com actores profissionais – outro exemplo de Rosselini Stromboli, Terra di Dio (1949) – o abandono dos heróis e de situações excepcionais em favor das pequenas coisas da vida, a utilização de luz natural, toda uma composição verdadeiramente humanista.
O neo-realismo italiano representou uma revolução, e revoluções em arte trazem sempre mudanças na forma, mesmo que implique uma revolução moral. As convenções de uma era. Um salto na consciência moral. E quando o cinema não sabe o seu caminho, ou encontra barreiras, há sempre algo que faz despoletar novas paixões. O neo-realismo foi a resposta.
O neo-realismo italiano poderá ter sido um mediador entre a realidade e a humanidade, e fundador de uma nova consciência social. Mas algo que podemos constatar, é que acima de tudo, o efeito desejado e procurado pelo espectador é o distanciamento da sua realidade particular.
Referências Bibliográficas:
Arnheim, R. 1957. Film as Art. Berkeley and Los Angeles, California: University of California Press
Barthes, R. 1982. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Edições 70
Barthes, R. [1984] 2008. «A Mensagem Fotográfica». In Revista de Comunicação e Linguagens, 39, pp. 263-272. Lisboa: Relógio d´Água.
Bazin, A. 1967. What is Cinema? Volume I. Berkeley, Los Angeles: University of California Press
Benjamin, W. [1931] 1992. «Pequena História da Fotografia». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. M. Moita. pp. 115-135. Lisboa: Relógio D’Água.
Deleuze, G. [1983] 2009. A Imagem-Movimento: Cinema 1. Trad. S. Dias. Lisboa: Assírio & Alvim
Eisenstein, S. [1929] 1977. «The Filmic Fourth Dimension». In Film Form. New York: Harvest Book
Flusser, V. [1983] 1998. Ensaio sobre a Fotografia. Lisboa: Relógio d’água.
Grilo, J. M. 2007. As Lições do Cinema, Manual de Filmologia. Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Lyotard, J-F. [1988] 1997. O Inumano, Considerações sobre o Tempo. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa: Editorial Estampa
[1] A câmara de filmar, como dispositivo óptico gerador de imagens técnicas. Vilém Flusser em Ensaio sobre a Fotografia – Para uma Filosofia da Técnica (1998), partido da fotografia, diz que as imagens técnicas são produtos de aparelhos, que são por sua vez produtos da técnica (textos científicos).
[2] Por um lado, em Dziga Vertov, vemos o potencial quer da câmara de filmar quer da montagem, por outro lado em Walter Ruttmann, vemos o potencial do real da cidade e do quotidiano.
[3] A transformação do cinema como um medium de expressão, deve ser levado em conta pelas suas Escolas. A Escola Soviética; a Escola do cinema clássico americano; a Escola Impressionista Francesa e a Escola Expressionista Alemã.
[4] O desenvolvimento tecnológico que atribuiu mobilidade à câmara e a montagem, são dois aspectos que Deleuze refere como elementos constituintes da evolução do cinema.
[5] Gilles Deleuze determina a imagem-movimento como um «conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros» (Deleuze, 2004).
[6] A montagem das atracções, pensada por Eisenstein, é o somatório de textos que elaboram uma certa teoria da montagem. Tal como a própria noção de montagem no cinema, também esta teorização, deverá, funcionar como um todo. A montagem intelectual – o cine-punho que tem como alvo o espectador –, proporcionando o cinema intelectual, é para Eisenstein: «[...] the realization of revolution in the general history of culture; building a synthesis of science, art, and class militancy.» A revolução aqui citada vai ao encontro do que João Mário Grilo diz no seu Manual de Filmologia:
[7] Recorremos aqui às notas de Roland Barthes, onde o semiólogo francês analisa alguns fotogramas de Eisenstein. Barthes classifica três níveis de sentido: o nível informativo, «onde se acumula todo o conhecimento», o nível da comunicação. O nível simbólico, um simbolismo diegético, que será o nível da significação, e por fim o terceiro sentido: uma ideia, e somos nós que tiramos – uma imagem que não é nem informativa, nem simbólica mas uma obliquidade que não é descritível: «[...] o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, [...].» (Barthes, 1982: 45)
[8] Este mundo desconhecido é o que Walter Benjamin aponta como inconsciente óptico. É através dos dispositivos ópticos que o homem consegue ver aquilo que não é possível pelo olho humano. (Benjamin: 1992)
[9] 1927 foi também o ano de Metropolis de Fritz Lang. A ficção utópica de Lang, e o realismo objectivo de Berlim Sinfonia de uma Grande Cidade, colocam estas duas obras em clara oposição, no entanto caminharam juntas no grande impacto que causaram e ainda causam ao espectador.
[10] De notar, no decorrer do filme, que são poucas as pessoas que se ligam de forma directa e ocular à câmara. Ninguém reage à presença daquele dispositivo de catalogação.
[11] Esta relação paradoxal é descrita por Roland Barthes: A fotografia é por um lado um analogon perfeito - uma mensagem sem código - e por outro lado é uma mensagem conotada, um segundo sentido. Ou seja, a fotografia (imagem-técnica) carrega duas dimensões: a denotação sendo a pura subtracção do real. E a conotação: a «[...], maneira de que se serve a sociedade para mostrar, numa certa medida, o que ela pensa.» (Barthes, 2008: 264)
[12] João Mário Grilo diz o seguinte: «E durante 20 anos, a reflexão teórica sobre o cinema fará uma longa travessia do deserto. Será somente no final dos anos 40, com a Filmologia, e durante os anos 50. Sobretudo com o trabalho de Bazin e Kracauer, que poderemos voltar a falar de uma teoria do cinema.» (Grilo, 2007: 152)
[13] Os estúdios estava a ressentir da crise do pós-guerra. E se de caos vem a ordem, a ordem passou a ser nas ruas de Roma e não no interior dos estúdios. Roma passou a ser o cenário.
Comecemos a nossa viagem pelo princípio basilar do cinema[3]: A imagem e modo como nós, espectadores, percepcionamos o que é projectado na tela. Vinte e quatro imagens por segundo é quanto basta para ficarmos maravilhados com a sucessão de planos que decorrem de uma construção imagética esboçada pelo cineasta.
O cinema, na sua génese, habitava uma espécie de ideal normativo, no qual a objectiva, por ser objectiva e isenta de qualquer tipo de “preconceitos” , capturava e reproduzia a percepção natural. Esta pressuposição inicial, que poderemos conotar como cândida, é constitutiva de um entusiasmo primordial, muito devido ao cariz mágico do cinema. Rudolph Arnheim em Film as Art (1957) rebate a comparação da seguinte maneira: «The limitations of a film picture and the limitations of sight cannot be compared because in the actual range of human vision the limitation simply does not exist.» (Arnheim, 1957: 16-17). Acrescentamos que logo na tomada de vista a delimitação espacial, quer da câmara de filmar, quer na projecção, colocam em quadro algo que nós percepcionamos em “aberto”. Outro aspecto que poderemos mencionar, dentre outros, será por exemplo a noção de bidimensionalidade.
Com a emancipação do dispositivo técnico[4], o cinema “libertou-se”, e de imagens em movimento, passámos para um movimento outro: a imagem-movimento[5]. «[...] o plano deixará de ser uma categoria espacial para tornar-se temporal; [...].» (Deleuze, 2004: 14). Ou seja, de um movimento abstracto, resultado de cortes imóveis, para um corte móvel enquanto apreensão imediata da consciência. Na óptica deleuziana o que o cinema coloca então em perspectiva é um movimento sobre outro movimento. Deste modo a noção de corte móvel, não é um espaço percorrido, mas o acto de percorrer – uma duração. Reforçamos esta observação recorrendo ao Manual de Filmologia (2007) de João Mário Grilo: «Essencialmente, uma imagem-movimento é uma imagem relativa e dinâmica que não só pensa as relações entre as coisas (e os seus movimentos) dentro de um conjunto fechado (enquadramento) como se esforça por pensar as relações desses conjuntos entre si, e de todos eles perante uma totalidade que, por definição, permanece Aberta (o papel da montagem).» (Grilo, 2007:31)
Esta abertura, relação entre parte e todo, é a espinha dorsal do cinema. Razão pelo qual Serguei Eisenstein descreveu a montagem como o Todo do filme – a Ideia[6]. Ou seja, o modo como os fotogramas se interligam e relacionam, expressam uma totalidade que vai além do plano informativo ou simbólico. Há um terceiro sentido, que Roland Barthes tão bem aponta[7], que surge da tessitura de e entre imagens. E é nesta relação de montagem - conflito entre imagens (e nas imagens) – e formulação fílmica, que direcionamos a nossa atenção para o filme O homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov.
O Homem da Câmara de Filmar é um manifesto da visualidade maquínica através da própria montagem. É a própria percepção visual e o estabelecimento de um ponto de vista que se constituí numa meta-narrativa fragmentada. Para além de Kino-eye (1924), que está mais direccionado à lógica da propaganda, a experiência sobre a própria forma plástica do filme irriga toda a obra de Vertov e remete para uma ideia de montagem, mas também uma certa visualidade, um formalismo essencial. O cineasta soviético insere-se aqui, para nosso interesse, porque é mesmo disso que trata o surgimento de uma nova consciência. A imagética de Dziga Vertov além de nos confrontar directamente com as nossas limitações visuais - a percepção humana não consegue por si só apreender a totalidade da vida e do trabalho – apresenta, também, todo um campo de possibilidades para onde a câmara pode, objectivamente, apontar. Este filme inovador traz à fruição aquilo que o cinema deveria ser. E fá-lo também indicando para um horizonte que o cinema potencialmente traz ao homem: Uma nova percepção do mundo que, apenas a máquina poderia decifrar – um mundo desconhecido até então[8]. Nas mãos de Mikhail Kaufman, a câmara nunca é estática, e desloca-se por onde nenhum olho humano tinha chegado – nas chaminés, nos carris do comboio, de ângulos inusitados, no alto das pontes, etc. Por meio de explosões contínuas e de artifícios cinematográficos – velocidades de câmara variáveis, efeitos split-screen, uso de lentes prismáticas e montagem firmemente estruturada – O Homem da Câmara de Filmar move-se fora do storytelling de Hollywood e coloca-se mais perto de uma linguagem absoluta do cinema. É um caleidoscópio de imagens que, através da montagem, esquarteja a realidade. Não há já nada dentro de um plano que tenha princípio meio e fim, tudo é: puro movimento.
De puro movimento, objectivado pela câmara, passamos a uma esteticização da metrópole. Contrapondo com a obra de Vertov, Berlim – Sinfonia de uma Grande Cidade exibe uma visão citadina onde a câmara se coloca à distância dos seus sujeitos, como que um predador envergonhado da sua própria condição natural: capturar imagens. No entanto, mesmo recorrendo a princípios de montagem da escola soviética, este filme de 1927[9], estrutura-se pelas suas características iminentemente documentalistas. Walter Ruttmann aponta a sua câmara para a vida urbana sem ter qualquer intenção ideológica. E, contrário a Vertov, que critica o cinema orgânico burguês, Ruttmann inscreve esta obra numa espécie de catalogação do real. A cidade é um placo, e os transeuntes tornam-se actores amadores. Este documento histórico reporta à distância[10] a vida urbana enaltecendo de certa forma a sociedade: O homem, arquitectura, máquinas, lazer e trabalho, tudo se compõe melodicamente, criando uma partitura visual onde o conjunto de estímulos, produzidos fotograficamente, realizam um todo altamente humanista. O que está em evidência nesta obra é esse quadro melódico, mas acima de tudo estético sobre a existência do homem. Filmado entre guerras e perto da grande crise financeira, além de um retrato da cidade de Berlim, é também uma série fotográfica do real, edificando-se como uma espécie de álbum de família global.
Recorremos a André Bazin em What is Cinema (1967) para apontar esta noção de realismo fotográfico: «The realism of the cinema follows directly from its photographic nature. Not only does some marvel or some fantastic thing on the screen not undermine the reality of the image, on the contrary it is its most valid justification.» (Bazin, 1967: 108). É a fotografia e a sua relação paradoxal[11] que valida o realismo. E esta validação conotada, é fruto de uma teorização do cinema nos anos 20 do século passado. Mas, como todo o fruto que amadurece e se decompõe para dar origem a uma nova geração, a elaboração de um pensamento teórico só voltou a surgir nos anos 40/50 com Bazin e Kracauer[12].
O cinema como uma espécie de subtracção do real, não têm como propósito fundador a narração de uma história, mas, a produção de efeitos. Retomando as noções da Escola Soviética, quer seja um cine-murro, ou uma miríade de cine-olhos, a intenção primeira da 7ª arte é atingir o espectador de modo provocar algum efeito – entreter, despertar, expandir a visão, etc. O aspecto narrativo, que decorre deste intento, é apenas um dos elementos constitutivos do cinema. E foi seguindo esta prioridade fílmica que o neo-realismo se desacoplou do cinema clássico americano – onde a imagem-acção reinava.
João Mário Grilo cita Rossellini: «As coisas estão aí, para quê manipulá-las» (Grilo, 2007: 153) – analisando bem estas palavras, podemos considerar, que a realidade como ela é percepcionada pelo homem – de forma limitada, carregada de empatias e apatias, uma experiência subjectivada – é mais rica que o cinema de ficção. O real é já bastante fecundo de fingimentos e dissimulações. E o que o neo-realismo italiano veio colocar na grande tela foi isso mesmo: A vida é bela com todas as suas cores. O encanto burguês é uma farsa que só existe no campo da ideologia.
E longe de iludir o espectador, o que o neo-realismo pretendeu, foi confrontar o espectador com a real feição das coisas.
Cesare Zavattini, um dos pioneiros da teoria do neo-realismo italiano, afirmava que o filme ideal era aquele que iria mostrar hora e meia da vida de um homem, onde nada se passava. No entender de Zavattini, o neo-realismo deveria ser, antes de tudo, uma «estética da rejeição», contra os pilares do cinema clássico e o studio-system.
Gilles Deleuze afirma o seguinte acerca do surgimento desta nova concepção de cinema, em resposta à pretensiosa hegemonia do cinema clássico americano: «[...] por um lado dispunha de uma instituição cinematográfica que tinha relativamente escapado ao fascismo, por outro lado podia invocar uma resistência e uma vida popular subjacentes à opressão, se bem que desprovidas de ilusão. Era preciso apenas, para o apreender, um novo tipo de «narração» capaz de compreender a elíptica e o inorganizado, como se o cinema tivesse de partir do zero, pondo em questão todas as aquisições da tradição americana.» (Deleuze, 2004: 279-280).
O evidência colocada na insurreição do neo-realismo, visava criar um corte político com o passado de modo a colocar o cinema ao serviço da sociedade e das consciências. Desta forma, invocando a responsabilidade social dos cineastas na denúncia das injustiças e na reconstrução de uma Itália verdadeiramente democrática. O requisito do realismo no cinema resultava da convicção de que só a verdade seria útil ao homem e deste modo invocar a mobilização solidária dos espectadores perante a situação de atribulação dos seus semelhantes. Daí a preferência dada ao retrato do homem comum em situações comuns.
O neo-realismo, nesta perspectiva, deverá ser encarado como uma tomada de consciência. Uma crítica social e política. Uma redescoberta humanista reconfigurada pela consciência dos cineastas italianos e re-enquadrada pela câmara de filmar. Já não estamos perante um caleidoscópio de imagens, nem perante um distanciamento puramente óptico e objectivo, mas o resultado de toda uma nova consciência fílmica.
Tornando-nos espectadores da obra de Rossellini, Roma Cidade Aberta, damos conta que se tratou de uma espécie de necessidade espiritual, sem haver consciência dessa necessidade. Talvez uma necessidade social, já que nessa altura não havia condições financeiras[13] para filmar nos estúdios. O pós-guerra suscitou uma nova paixão reveladora de uma nova forma de fazer cinema. Um cinema verdadeiro, transportado pela poesia visual e lírica. E foi por causa deste lirismo que o neo-realismo cativou tanta gente. É patente o lado poético na realidade projectada por este estilo.
Roma Cidade Aberta, pura evocação do neo-realismo italiano, poderá ser narrado como a antítese daquilo que retrata: a guerra. À ausência de humanismo e à cega dependência de ordens ditadas pelo regime opressor, o neo-realismo responde - como um todo, como um terceiro sentido que não é imediatamente apreendido - com um verdadeiro retrato humanista, através da imagem social que desenha. E também exige a distância de uma certa autoridade que deixou de estar presente ao filmar nas ruas com recursos limitados; e até a ausência de argumento. Podemos considerar a montagem de Roma Cidade Aberta feita no próprio local de filmagens. A magia do neo-realismo italiano está nesta plena devoção humanista aos problemas sociais que fazem questão em acompanhar a humanidade desde o princípio dos tempos. Rosselini deu uma ideia visual de como as coisas são na realidade. Não era a estética mas o que está por detrás das coisas, a ideia das coisas, a essência da vida social.
Se por um lado o neo-realismo foi a tomada de consciência sobre as atrocidades sociais do pós-guerra, e encarando também o neo-realismo como uma crítica ao cinema americano, o que está em causa é a elaboração de uma estrutura simbólica de poder. Ou seja, a instituição de símbolos. Ao que recorremos à passagem de Jean-François Lyotard em O Inumano Considerações sobre o Tempo (1997):
«Quando procuramos apresentar que existe algo que não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação. Isto significa que os pintores e o público, entre outros, não dispõem de símbolos estabelecidos, de figuras ou de formas plásticas, os quais permitiram significar e perceber que se trata, na obra, de Ideias da razão ou da imaginação, como foi o caso na pintura cristã romana. Não pode haver, no mundo tecno-científico e industrial, símbolos estáveis do bem, do justo, do verdadeiro, do infinito, etc. são estes «realismos», - os quais são, realidade, academismos burgueses no fim do século XIX, socialistas e nacional-socialistas durante o século XX – que tentam reconstituir simbólicas, oferecer ao público obras que este poderá saborear e diante das quais se poderá identificar com Imagens (raça, socialismo, nação, etc.). Sabemos que este esforço sempre exigiu a eliminação das vanguardas. Estas levam a cabo um trabalho secreto de interrogação dos pressupostos «técnicos» da pintura, os quais as levam a desprezar completamente a função «cultural» de estabilização do gosto e de identificação de uma comunidade, por meio de símbolos visíveis.» (Lyotard, 1997: 129)
Ou seja, as imagens (simbólicas), são sempre encaradas como uma construção cultural. E a proposta do neo-realismo é a desconstrução de um simbolismo capitalista e fascista. Uma revolução social preconizada pela câmara de filmar: que decorre em décors reais, preferencialmente nos locais onde decorreram os eventos trágicos – algo presente em Roma Cidade Aberta – a utilização de não-actores, ou actores amadores caldeados com actores profissionais – outro exemplo de Rosselini Stromboli, Terra di Dio (1949) – o abandono dos heróis e de situações excepcionais em favor das pequenas coisas da vida, a utilização de luz natural, toda uma composição verdadeiramente humanista.
O neo-realismo italiano representou uma revolução, e revoluções em arte trazem sempre mudanças na forma, mesmo que implique uma revolução moral. As convenções de uma era. Um salto na consciência moral. E quando o cinema não sabe o seu caminho, ou encontra barreiras, há sempre algo que faz despoletar novas paixões. O neo-realismo foi a resposta.
O neo-realismo italiano poderá ter sido um mediador entre a realidade e a humanidade, e fundador de uma nova consciência social. Mas algo que podemos constatar, é que acima de tudo, o efeito desejado e procurado pelo espectador é o distanciamento da sua realidade particular.
Referências Bibliográficas:
Arnheim, R. 1957. Film as Art. Berkeley and Los Angeles, California: University of California Press
Barthes, R. 1982. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Edições 70
Barthes, R. [1984] 2008. «A Mensagem Fotográfica». In Revista de Comunicação e Linguagens, 39, pp. 263-272. Lisboa: Relógio d´Água.
Bazin, A. 1967. What is Cinema? Volume I. Berkeley, Los Angeles: University of California Press
Benjamin, W. [1931] 1992. «Pequena História da Fotografia». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. M. Moita. pp. 115-135. Lisboa: Relógio D’Água.
Deleuze, G. [1983] 2009. A Imagem-Movimento: Cinema 1. Trad. S. Dias. Lisboa: Assírio & Alvim
Eisenstein, S. [1929] 1977. «The Filmic Fourth Dimension». In Film Form. New York: Harvest Book
Flusser, V. [1983] 1998. Ensaio sobre a Fotografia. Lisboa: Relógio d’água.
Grilo, J. M. 2007. As Lições do Cinema, Manual de Filmologia. Lisboa: Edições Colibri/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
Lyotard, J-F. [1988] 1997. O Inumano, Considerações sobre o Tempo. Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre. Lisboa: Editorial Estampa
[1] A câmara de filmar, como dispositivo óptico gerador de imagens técnicas. Vilém Flusser em Ensaio sobre a Fotografia – Para uma Filosofia da Técnica (1998), partido da fotografia, diz que as imagens técnicas são produtos de aparelhos, que são por sua vez produtos da técnica (textos científicos).
[2] Por um lado, em Dziga Vertov, vemos o potencial quer da câmara de filmar quer da montagem, por outro lado em Walter Ruttmann, vemos o potencial do real da cidade e do quotidiano.
[3] A transformação do cinema como um medium de expressão, deve ser levado em conta pelas suas Escolas. A Escola Soviética; a Escola do cinema clássico americano; a Escola Impressionista Francesa e a Escola Expressionista Alemã.
[4] O desenvolvimento tecnológico que atribuiu mobilidade à câmara e a montagem, são dois aspectos que Deleuze refere como elementos constituintes da evolução do cinema.
[5] Gilles Deleuze determina a imagem-movimento como um «conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros» (Deleuze, 2004).
[6] A montagem das atracções, pensada por Eisenstein, é o somatório de textos que elaboram uma certa teoria da montagem. Tal como a própria noção de montagem no cinema, também esta teorização, deverá, funcionar como um todo. A montagem intelectual – o cine-punho que tem como alvo o espectador –, proporcionando o cinema intelectual, é para Eisenstein: «[...] the realization of revolution in the general history of culture; building a synthesis of science, art, and class militancy.» A revolução aqui citada vai ao encontro do que João Mário Grilo diz no seu Manual de Filmologia:
[7] Recorremos aqui às notas de Roland Barthes, onde o semiólogo francês analisa alguns fotogramas de Eisenstein. Barthes classifica três níveis de sentido: o nível informativo, «onde se acumula todo o conhecimento», o nível da comunicação. O nível simbólico, um simbolismo diegético, que será o nível da significação, e por fim o terceiro sentido: uma ideia, e somos nós que tiramos – uma imagem que não é nem informativa, nem simbólica mas uma obliquidade que não é descritível: «[...] o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, [...].» (Barthes, 1982: 45)
[8] Este mundo desconhecido é o que Walter Benjamin aponta como inconsciente óptico. É através dos dispositivos ópticos que o homem consegue ver aquilo que não é possível pelo olho humano. (Benjamin: 1992)
[9] 1927 foi também o ano de Metropolis de Fritz Lang. A ficção utópica de Lang, e o realismo objectivo de Berlim Sinfonia de uma Grande Cidade, colocam estas duas obras em clara oposição, no entanto caminharam juntas no grande impacto que causaram e ainda causam ao espectador.
[10] De notar, no decorrer do filme, que são poucas as pessoas que se ligam de forma directa e ocular à câmara. Ninguém reage à presença daquele dispositivo de catalogação.
[11] Esta relação paradoxal é descrita por Roland Barthes: A fotografia é por um lado um analogon perfeito - uma mensagem sem código - e por outro lado é uma mensagem conotada, um segundo sentido. Ou seja, a fotografia (imagem-técnica) carrega duas dimensões: a denotação sendo a pura subtracção do real. E a conotação: a «[...], maneira de que se serve a sociedade para mostrar, numa certa medida, o que ela pensa.» (Barthes, 2008: 264)
[12] João Mário Grilo diz o seguinte: «E durante 20 anos, a reflexão teórica sobre o cinema fará uma longa travessia do deserto. Será somente no final dos anos 40, com a Filmologia, e durante os anos 50. Sobretudo com o trabalho de Bazin e Kracauer, que poderemos voltar a falar de uma teoria do cinema.» (Grilo, 2007: 152)
[13] Os estúdios estava a ressentir da crise do pós-guerra. E se de caos vem a ordem, a ordem passou a ser nas ruas de Roma e não no interior dos estúdios. Roma passou a ser o cenário.