O olho e o espírito segundo Dziga Vertov:
O Homem da Câmara de Filmar
«Não parece, contudo, haver dúvidas de que já estamos numa era de mutação da técnica e de que, além disso, a manipulação da imagem, ou o que já se chama vulgarmente a imagem da imagem e a imagem na imagem, seja uma das variantes da tendência geral para a desorientação dos espíritos, [...].» (Francastel, 1987: 9) Tendo como ponto de partida uma certa desorientação dos espíritos, vamos indagar de que maneira a câmara de filmar realiza uma nova percepção do mundo - através de uma linguagem própria[1] – e de que modo, encarando o dispositivo óptico como objecto técnico que se individuou[2] e se individua, coloca em aberto a produção de significado.
Dispondo em pano de fundo a obra de Dziga Vertov, “O homem da câmara de filmar”(1929), o nosso caminho será através da óptica da câmara de filmar. Desenhando como horizonte de expectativa as seguintes questões: Devemos observar a câmara de filmar como uma prótese óptica ou uma ortótese de percepção[3]? E será que vivemos num real cinematográfico, onde a produção de sentido é realizada pela constante captura de imagens do real?
«O Homem da Câmara de Filmar»
Se desde o Quattrocento o homem conseguiu, através da perspectiva[4], colocar em quadro o real simulando a percepção natural, com o surgimento dos dispositivos ópticos, o homem colocou-se numa espécie de conforto existencial, como que assumindo um papel de mero observador na constante produção de imagens. A re-apresentação do real, deixou de ter ingredientes subjectivos, e passou a ser elaborada e programada por meios técnicos: que em nada incorriam de mistérios ou preconceitos. Da câmara obscura, passando pela máquina fotográfica, até à câmara de filmar, o potencial final daquilo que é produzido por tais aparelhos – imagens-técnicas – dependerá apenas desse medium[5]. E emprestando o olho aos dispositivos ópticos, quais máquina reprodutivas, o homem capitalizou o mundo em imagens, dando começo à elaboração de um álbum fotográfico global: um catálogo do real.
O Homem da Câmara de Filmar (1929), é uma deslumbrante meta-narrativa que celebra o cinema e toda a máquina produtiva soviética. Este filme usa técnicas de edição radicais e uma espécie de pirotecnia cinematográfica para retratar a quotidaneidade das terras russas, do amanhecer ao anoitecer. Para além de celebrar os trabalhadores, as máquinas e o cinema, constituinte da realidade soviética – e também aquilo que podemos considerar como uma tessitura visual do que iria estruturar visualmente o resto do mundo – Vertov utiliza o cine-olho de modo a transcender a própria realidade que ele celebra. No seu manifesto WE: Variant of a Manifesto, iniciado em 1919, Vertov diz:
«I am kino-eye. I am a builder. I have placed you, whom I’ve created today, in an extraordinary room which did not exist untill just now when I also created it. [...] I am kino-eye. I create a man more perfect than Adam. I create thousands of diferent people in accordance with preliminar blue-prints and diagrams of diferent kinds. I am kino-eye. From one person I take the hands, the strongest and most dexterous; from another I take the legs, the swiffest and most shapely; from a third, the most beautiful and expressive head – and through montage I create a new, perfect man. [...] I am kino-eye, I am a mechanical eye. I, a machine, show you the world as only I can see it. Now and forever, I free myself from human immobility, I am in constant motion, [...]. »
Por estas palavras podemos designar que a intenção de Vertov não era o puro registo, mas a exposição do olho-cinema. A imagética de Dziga Vertov confronta-nos directamente com as nossas limitações visuais: A percepção humana não consegue por si só apreender a totalidade da vida e do trabalho. E o que Vertov nos apresenta é o que havia de inconsciente à óptica natural do homem, propalando uma percepção amplificada dos sentidos que apenas poderia ser apresentada e compreendida por meio da câmara, de modo a criar um novo ser adâmico. O propósito do cineasta soviético, não era entreter o espectador, e também não se pretendia acordá-lo através de um cine-punho (Deleuze, 1983), mas mostrar o mundo pela máquina, mostrar toda a potência da câmara de filmar. Não no sentido de uma sinfonia cosmética de uma cidade e de um tempo[6] mas a exacerbação mágica do que uma miríade de kino-olhos podem dar a ver. E desta incapacidade da percepção humana, ou a falta de qualidades[7], que é colmatada pela técnica, remete-nos para aquilo que Walter Benjamin classificou como Inconsciente Óptico: «É uma natureza diferente a que fala à câmara ou aos olhos; diferente principalmente na medida que em vez de um espaço impregnado de consciência pelos homens, surge um outro embrenhado pelo inconsciente. [...] A fotografia com os seus meio auxiliares, o retardador, as ampliações, permite-lho. Deste inconsciente óptico só se tem conhecimento através da fotografia, da mesma forma que só através da psicanálise se tem conhecimento do inconsciente instintivo.» (Benjamin, 1931: 119). Ou seja, as tecnologias do visual permitem aceder àquilo que o olho humano não se apercebe naturalmente e aquilo que o inconsciente óptico fornece, vai para além do que a própria natureza poderia oferecer ao homem. Será então o colocar disponível de um novo mundo, um mundo miniaturizado, um mundo expandido, um mundo em movimento.
O exemplo cinematográfico que escolhemos, o caleidoscópio de imagens de Vertov, qual elogio ao manifesto futurista de Marinetti, anuncia todas as potencialidades do kino-olho. Este kino-olho põe à disposição, ele mostra, dá a ver e nesse dar a ver manipula. Transforma-se. Produz sentido, e um sentido que não se circunscreve à linguagem do cinema, mas estende-se também à cultura. E de um olho que tudo vê e tudo mostra, uma nova realidade será traçada.
A Imagem-Técnica
«A Imagem Técnica» é o título do segundo capítulo de Ensaio sobre a Fotografia, para uma Filosofia da Técnica, de Vilém Flusser, resultado de várias conferências e publicado pela primeira vez em 1983. A análise de Flusser centrar-se-á nos aparatos técnicos, nas suas implicações semióticas e na forma como produzem história. Assim, e ao longo de um trabalho dividido em nove capítulos, a fotografia é apenas abordada não como o principal objecto de estudo, mas como um modelo para a compreensão dos aparelhos-técnicos. Flusser inicia o seu segundo capítulo fixando uma definição de imagem-técnica como aquela que é produzida por aparelhos. Os aparelhos, por sua vez, são produtos da técnica que trata da aplicação de textos científicos. Já as imagens tradicionais são aquelas que precedem esses textos, sendo as imagens-técnicas aquelas que decorrem de textos «altamente evoluídos». No desdobramento desta concepções, atentemos ao seguinte excerto: «Historicamente, as imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais “imaginam” o Mundo; as imagens técnicas imaginam os textos que imaginam o mundo.» (Flusser, 1998: 33)
Ora estabelecendo um paralelo que vê a imagem-técnica ser, em si mesma e pelo seu modo de existência, uma máquina. E é com base na mecanologia de Gilbert Simondon e da sua obra On the Mode of existence of Technical Objects que procedemos a tal correspondência. Se não vejamos: Uma imagem-técnica funciona como uma máquina e é esse grau de identificação ou semelhança que lhe confere uma posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais. Historicamente são diferentes das imagens tradicionais porque as imagens técnicas produzem relações, ou porque se transduzem[8] em um cem número de novas ligações. Ontologicamente descobrimos como, partindo de Simondon, são estruturas que se vão individuando rumo a uma concretização[9].
A magia imagética ritualiza os programas e não os mitos como no caso da magia pré-histórica das imagens tradicionais, e irá emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceptualmente (Flusser: 1998, 36). Logo, as imagens técnicas substituem a consciência histórica porque substituem os textos. Ou, retomando o nosso argumento inicial deste capítulo, precisamente porque são máquinas, produzem novas relações, ou discursos. Por isso, dirá Flusser, que a invenção de imagens técnicas é comparável à invenção da escrita. No entanto, encontramos mais à frente, neste capítulo auxiliar para o nosso trabalho, que Flusser expõe alguma desconfiança em relação às imagens técnicas porquanto estas falseiam o conhecimento científico, substituindo ainda as imagens tradicionais (Flusser, 1998: 38) São, segundo o filósofo, «ruins», «falsas» e «feias» porque se levantam como «barragens» onde tudo desemboca em vez de fluir. Mas respondendo a esta desconfiança de Vilém Flusser, a perspectiva de Gilbert Simondon poderá servir como apaziguadora desta falta de confiança perante tais imagens técnicas, respondendo com uma reforma cultural: o Homem deverá incluir a máquina/imagem-técnica na sua cultura, e não se entregar numa aporia bipolarizada entre tecnofobia, ou tecnofilia. Ou seja, o ser humano deverá organizar uma sociedade que integra as máquinas, ou as imagens técnicas, procurando agir como um maestro que dirige músicos (Simondon, 1980: 13).
A Câmara de Filmar
«Man invents, discovers, finds (eurisko), imagines (mekhane), and realizes what imagines: prostheses, expedients. A pros-thesis is what is place in front that is, what is outside, outside what it is placed in front of.» (Stiegler, 1998: 193) Desde o rosto de Narciso espelhado na água, que o homem imagina fixar imagens. E pelo desejo de fixar, dá-se à possibilidade de criar uma história da imagem do homem[10]. O homem passa a fazer-se com aquilo que imagina. E numa incessante batalha contra a extinção, poderíamos até supor que o homem tem imaginado desde sempre a câmara de filmar: uma linguagem que falasse a memória eterna. Por outras palavras, o homem deseja ver-se reflectido em tudo o que reluz, para se fixar no tempo. Daí que tenha inicialmente imaginado e edificado um mundo à imagem de Deus; imaginou e pintou um céu, uma vida eterna, e, um inferno (também ele perpétuo). Ou seja um mundo simbólico.
Com o surgimento da câmara de filmar, a mão passou «a desencadear um processo programado em máquinas automáticas, que não só exteriorizam o utensílio, o gesto, e a motricidade, como invadem o domínio da memória e do comportamento maquinal.»(Leroi-Gourhan, 1990b: 38-39). E neste acto de extensão, a câmara de filmar, que se individuou desde a câmara escura[11], inscreve-se como uma prática protésica e também como uma ortótese que rectifica a nossa percepção, que invade o domínio da memória e passa também a estruturar como e o que se vê.
Com a emancipação do dispositivo técnico[12], o cinema “libertou-se”, e de imagens em movimento, passamos para um movimento outro: a imagem-movimento[13]. «[...] o plano deixará de ser uma categoria espacial para tornar-se temporal; [...].» (Deleuze, 2004: 14). Ou seja, de um movimento abstracto, resultado de cortes imóveis, para um corte móvel enquanto apreensão imediata da consciência. Na óptica deleuziana o que o cinema coloca então em perspectiva é um movimento sobre outro movimento. Deste modo a noção de corte móvel, não é um espaço percorrido, mas o acto de percorrer – uma duração. Reforçamos esta observação recorrendo ao Manual de Filmologia (2007) de João Mário Grilo: «Essencialmente, uma imagem-movimento é uma imagem relativa e dinâmica que não só pensa as relações entre as coisas (e os seus movimentos) dentro de um conjunto fechado (enquadramento) como se esforça por pensar as relações desses conjuntos entre si, e de todos eles perante uma totalidade que, por definição, permanece Aberta (o papel da montagem).» (Grilo, 2007:31)
A Montagem
Esta abertura, relação entre parte e todo, é a espinha dorsal do cinema. Razão pelo qual Serguei Eisenstein descreveu a montagem como o Todo do filme – a Ideia[14]. Ou seja, o modo como os fotogramas se interligam e relacionam, expressam uma totalidade que vai além do plano informativo ou simbólico. Há um terceiro sentido, que Roland Barthes tão bem aponta[15], que surge da tessitura de e entre imagens. E neste colocar em aberto, que é o papel da técnica de montagem, nomeamos Bernard Stiegler em Technics and Time, 1 – The Fault of Epimetheus, que toma como objecto de estudo a técnica apreendida como o horizonte de toda a possibilidade de vir e toda a possibilidade de um futuro. Ou seja, se a essência da técnica não é a técnica em si mas a produção de sentido; o que podemos conferir do retrato de O Homem da Câmara de Filmar é, também, um retrato[16] do poder-ser, de um aparecer, de uma produção de sentido através da linguagem do cinema. Recorremos a Julia Kristeva, com a sua obra História da Linguagem (1974), para reforçar a ideia de linguagem do cinema: «O cinema não copia de um modo «objectivo», naturalista ou contínuo uma realidade que lhe é proposta: corta sequências, isola planos, e recombina-os através de uma nova montagem. O cinema não reproduz coisas: manipula-as, organiza-as, estrutura-as. E só na nova estrutura obtida pela montagem dos elementos é que estes ganham sentido.» (Kristeva, 1974: 361). Kristeva continua expondo, que outra tendência que se opõe à montagem, como princípio de linguagem do cinema, é a orientação para a narratividade. Ou seja, além da montagem o que está também implicado, na linguagem do cinema, é um movimento diegético. Um corte e juntura cinematográfico que tem sempre como horizonte a produção de um sentido. Algo que podemos considerar para a linguagem do cinema, num sentido lato, como movimento, que não só armazena como transporta ou traduz a experiência de um modo para outro.
Será que a linguagem do cinema projecta a priori um futuro para o Homem? Bernard Stiegler é muito concreto quando afirma que a técnica evoluí mais rapidamente que a cultura (Stiegler, 1998). Sendo assim, poderíamos desde já corresponder com a verdade do star-system, que foi criada pela câmara de filmar[17] - um mundo cultual baseado na idolatria - estrutura vazia e meramente estética. Mas o que pretendemos alcançar com esta interrogação é algo mais atípico.
Notas Finais e a Técnica Cut-up
O Homem com uma câmara de filmar é um manifesto escrito em película: invoca a mobilização pela técnica que se respirava no princípio do século XX. Vertov, atento ao mundo que o rodeava, fixou a aceleração que muitos se recusavam a ver, que muitos ainda procuram ignorar. O mundo nunca mais parou, tudo fora posto em movimento. Esta obra da 7ª arte, faculta de modo constante uma viagem entre tempos, que não fica apenas por aquilo que se vê, mas a forma como se vê e o que se dá a ver. É uma espécie de meta-realismo colocado em mise-en-abyme, onde o “toque” de arte é dado principalmente pelo potencial da máquina e não apenas pelo lugar que o homem ocupa. É uma captura memorial que se constrói de modo a projectar um futuro possível. E o que William S. Burroughs propõe é um método que nos é extremamente proveitoso: O cut-up é uma técnica que vive da herança dos poemas dadaístas, uma vez que presume entrelaçar inscrições com tantas outras inscrições. E tudo pode ser relacionado: texto, som, imagem. Portanto, tudo o que foi capturado pode ser reinscrito numa nova forma através do método cut-up. É assim que se «estabelecem novas conecções entre imagens e o campo de visão que, a partir daí, se expande» (Burroughs, 1978: 5). Mas o que queremos salientar desta técnica de Montagem é que podem inclusivamente ser proféticas. Essas novas composições, deixam em aberto a possibilidade de apresentar uma experiência ou evento ainda por vir, para além de representarem algo que já foi. É pois esse poder de antecipação que se liberta num cut-up. Tudo isto porque toda a linguagem é essencialmente mistificação. Tudo é ficção (Burroughs, 1978: 15). E tudo está em movimento.
A imagem produzida por dispositivos ópticos, isto é, a imagem técnica, permite uma exploração de tudo o que nos rodeia, e daquilo que não se vê[18]. E por intermédio da Montagem, a imagem poderá revelar mais sobre a realidade, do que a própria realidade percepcionada pelo olho humano. O olho humano é limitado em receber toda a realidade a todo o momento, o que poderá ter levado o homem, desde o seu alvor, a imaginar uma prótese ortotésica – o kino-eye.
«I am kino-eye, I am a mechanical eye. I, a machine, show you the world as only I can see it.»
O que assistimos com O Homem com uma câmara de filmar é a transmissão de um saber que poderá ter resistido à época que lhe foi contemporânea; trabalhando mais no futuro do que no presente; ou, até ensaiar um incisão no presente e libertar um futuro ainda por vir. Um presente-futuro que concretizará «a man more perfect than Adam». (Vertov, 1919)
Referências Bibliográficas:
Barthes, R. 1982. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Edições 70
Benjamin, W. [1936-39] 1992. «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade técnica». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 71-113. Lisboa: Relógio D’Água.
Benjamin, W. [1931] 1992. «Pequena História da Fotografia». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 115-135. Lisboa: Relógio D’Água.
Burroughs, W. Brion, G. [1978] 2010. The Third Mind. New York: The Viking Press.
Deleuze, G. [1983] 2009. A Imagem-Movimento: Cinema 1. Trad. Sousa Dias. Lisboa: Assírio & Alvim
Eisenstein, S.M. [1929] 1977. «The Filmic Fourth Dimension». In Film Form. New York: Harvest Book
Eisenstein, S.M. 1974, Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução, trad. C. Braga e I. Canelas. Porto: Editorial Presença
Francastel, P. [1983] 1987. Imagem, Visão e Imaginação. Trad. Fernando Caetano. Lisboa: Edições 70
Grilo, J. M. 2007. As Lições do Cinema, Manual de Filmologia. Lisboa: Edições Colibri/FCSH-UNL
Kristeva, J. [1969] 1999. História da Linguagem. trad. M. Barahona. Lisboa: Edições 70.
Leroi-Gourhan, A. [1964] 1990. O Gesto e a Palavra. Vol.1. Técnica e Linguagem. trad. V. Gonçalves. Lisboa: Edições 70.
Merlau-Ponty, M. [1960] 2006. O olho e o espírito. Trad. Luís Manuel Bernardo. Lisboa: Vega
Simondon, G. [1958] 1980. On the Mode of Existence of Technical Objects. Trad. Ninian Mellamphy. Ontario: University of Wetern Ontario.
Stiegler, B. [1994] 1998. Technics and Time 1: The Fault of Epimetheus. Trad. R. Beardsworth e G. Collins. Stanford: Stanford University Press.
[1] Consideraremos a linguagem do cinema, como aquilo que Serguei Eisenstein considerou como a espinha dorsal do cinema: A Montagem. Eisenstein afirma o seguinte em Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução (1974): «Sabe-se que foi a MONTAGEM o meio fundamental (e único) que conduziu o cinema a tão alto grau de eficácia. [...] O sucesso dos filmes soviéticos nas telas de todo o mundo deve-se, em grande parte, a um certo número de princípios de montagem que fomos os primeiros a descobrir e consolidar.» (Eisenstein, 1974: 34)
[2] Embora não seja a nossa intenção aprofundar este conceito, pelas definições quer de Gilbert Simondon, quer de Carl Jung, individuação é um processo evolutivo. Uma transformação ontogénica do objecto técnico. E para o nosso objecto de estudo, podemos comparar que, tal como o martelo que se individuou até se tornar em martelo pneumático, também a câmara escura se individuou até à câmara de filmar. Ou seja, é o tornar-se, procedendo por «saltos», em equilíbrios sucessivos, individuação «corresponde ao aparecimento de fases no ser» (Simondon, 1958: 13)
[3] Uma prótese é algo exterior ao corpo, tal como a ortótese. A diferença que poderemos encontrar será na sua aplicabilidade, no seu uso, na utilidade. No sentido lato entendemos a prótese como um elemento que se acrescenta na ausência de algo, enquanto a ortótese, que vêm do grego ortho, que significa reto, é um objecto que corrige sobre algo que existe.
[4] A Perspectiva faz ver para além de/através de – como que um elemento de transparência. Inicialmente definida como “perspectiva artificalis”, tem como pressuposto a criação de um campo perceptivo ilusoriamente tridimensional que segundo Jonathan Crary em Techniques of the Observer aponta a perspectiva como uma espécie de híbrido entre a imagem-técnica e a imagem tradicional.
[5] Fazemos aqui menção a uma espécie de responsabilização das imagens criadas por aparelhos técnicos, porque no fim não se trata de uma construção subjectiva, mas uma construção mediada: o olhar do pintor sobre uma paisagem é sempre um olhar subjectivo, mas o olhar do fotógrafo e a mão que segura a máquina, deverá ser apenas encarado numa lógica de ente auxiliar. A produção da imagem é exclusiva do apparatus técnico.
[6] Contrapondo com a obra de Walter Ruttmann: Berlin: A Sinfonia de uma Cidade (1927) que exibe uma visão citadina onde a câmara se coloca à distância dos seus sujeitos, como que predador envergonhado da sua própria condição natural: capturar imagens.
[7] Remetemos aqui as palavras de Bernard Stiegler para salientar a necessidade inventiva do homem para colmatar a sua falta de qualidades: «Humanity is without qualities, without predestination: it must invent, realize, produce qualities, and nothing indicates that, once produced, these qualities will bring about humanity, that they will become its qualities; for they may rather become those of technics.» (Stiegler, 1998:193-194)
[8] De ção, para usar aqui uma expressão própria ao trabalho de Gilbert Simondon, A transdução é uma operação onde um domínio submete informação a outro (Simondon; 1980, 18)
[9] Na sua obra On the Mode of Existence of Technical Objects, Simondon procura trabalhar os objectos técnicos a partir da sua ontogénese, isto é, a partir da operação de individuação.
[10] As inscrições rupestres são um relato da e na história do homem. Existem como marcas, que revelam algo que exige interpretação. A representação de um animal poderá ter vários significados, mas algo é certo: ali esteve alguém que decidiu fixar em pedra uma imagem, para ele ver, ou para outros verem.
[11] A câmara escura, um dispositivo analógico e não mais simbólico, permite captar a visão natural, onde se encontra afinidades e também descontinuidades com a noção de perspectiva e com o dispositivo fotográfico: nomeadamente na forma como pensam a reprodução do funcionamento do olho. Um fenómeno da visão com a formação de uma “pirâmide visual” que, delimitada pelos raios luminosos, se estabelece entre o objecto e o “olho ou o ponto no espaço que o representa.
[12] O desenvolvimento tecnológico que atribuiu mobilidade à câmara e a montagem, são dois aspectos que Deleuze refere como elementos constituintes da evolução do cinema.
[13] Gilles Deleuze determina a imagem-movimento como um «conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros» (Deleuze, 2004).
[14] A montagem das atracções, pensada por Eisenstein, é o somatório de textos que elaboram uma certa teoria da montagem. Tal como a própria noção de montagem no cinema, também esta teorização, deverá, funcionar como um todo. A montagem intelectual – o cine-punho que tem como alvo o espectador –, proporcionando o cinema intelectual, é para Eisenstein: «[...] the realization of revolution in the general history of culture; building a synthesis of science, art, and class militancy.» (Eisenstein, 1974: 83)
[15] Recorremos aqui às notas de Roland Barthes, onde o semiólogo francês analisa alguns fotogramas de Eisenstein. Barthes classifica três níveis de sentido: o nível informativo, «onde se acumula todo o conhecimento», o nível da comunicação. O nível simbólico, um simbolismo diegético, que será o nível da significação, e por fim o terceiro sentido: uma ideia, e somos nós que tiramos – uma imagem que não é nem informativa, nem simbólica mas uma obliquidade que não é descritível: «[...] o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, [...].» (Barthes, 1982: 45)
[16] capturado, enquadrado e projecto pela câmara de filmar.
[17] Walter Benjamin diz: «A estranheza do actor perante o equipamento, […], é essencialmente do mesmo tipo da estranheza que se sente perante a própria imagem reflectida no espelho. Mas agora, a imagem é separável da pessoa, é transportável.» (Benjamin, 1992: 94) Benjamin continua dizendo que esta imagem é transportada para o público. E o público, aquele que dá vida ao mundo, consome imagens-técnicas, objectos de desejo, retratos de uma ficção.
[18] Acrescentamos as palavras de Merleau-Ponty: «O «qual visual» dá-me, e dá-me apenas, a presença do que não sou, daquilo que é simplesmente e plenamente. Ele fá-lo porque, como textura, é a concreção de uma universal visibilidade, de um único Espaço que separa e reúne, que sustém toda a coesão (e mesmo a do passado e do futuro, pois ela não o seria se eles não fossem partes do mesmo espaço). Qualquer coisa visual, por muito individuo que seja, funciona também como dimensão, porque se oferece como resultado de uma deiscência do Ser. Isto quer finalmente dizer que o que é próprio do visível é ter uma dobragem do invisível em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.» (Merleau-Ponty, 2006: 67)
Dispondo em pano de fundo a obra de Dziga Vertov, “O homem da câmara de filmar”(1929), o nosso caminho será através da óptica da câmara de filmar. Desenhando como horizonte de expectativa as seguintes questões: Devemos observar a câmara de filmar como uma prótese óptica ou uma ortótese de percepção[3]? E será que vivemos num real cinematográfico, onde a produção de sentido é realizada pela constante captura de imagens do real?
«O Homem da Câmara de Filmar»
Se desde o Quattrocento o homem conseguiu, através da perspectiva[4], colocar em quadro o real simulando a percepção natural, com o surgimento dos dispositivos ópticos, o homem colocou-se numa espécie de conforto existencial, como que assumindo um papel de mero observador na constante produção de imagens. A re-apresentação do real, deixou de ter ingredientes subjectivos, e passou a ser elaborada e programada por meios técnicos: que em nada incorriam de mistérios ou preconceitos. Da câmara obscura, passando pela máquina fotográfica, até à câmara de filmar, o potencial final daquilo que é produzido por tais aparelhos – imagens-técnicas – dependerá apenas desse medium[5]. E emprestando o olho aos dispositivos ópticos, quais máquina reprodutivas, o homem capitalizou o mundo em imagens, dando começo à elaboração de um álbum fotográfico global: um catálogo do real.
O Homem da Câmara de Filmar (1929), é uma deslumbrante meta-narrativa que celebra o cinema e toda a máquina produtiva soviética. Este filme usa técnicas de edição radicais e uma espécie de pirotecnia cinematográfica para retratar a quotidaneidade das terras russas, do amanhecer ao anoitecer. Para além de celebrar os trabalhadores, as máquinas e o cinema, constituinte da realidade soviética – e também aquilo que podemos considerar como uma tessitura visual do que iria estruturar visualmente o resto do mundo – Vertov utiliza o cine-olho de modo a transcender a própria realidade que ele celebra. No seu manifesto WE: Variant of a Manifesto, iniciado em 1919, Vertov diz:
«I am kino-eye. I am a builder. I have placed you, whom I’ve created today, in an extraordinary room which did not exist untill just now when I also created it. [...] I am kino-eye. I create a man more perfect than Adam. I create thousands of diferent people in accordance with preliminar blue-prints and diagrams of diferent kinds. I am kino-eye. From one person I take the hands, the strongest and most dexterous; from another I take the legs, the swiffest and most shapely; from a third, the most beautiful and expressive head – and through montage I create a new, perfect man. [...] I am kino-eye, I am a mechanical eye. I, a machine, show you the world as only I can see it. Now and forever, I free myself from human immobility, I am in constant motion, [...]. »
Por estas palavras podemos designar que a intenção de Vertov não era o puro registo, mas a exposição do olho-cinema. A imagética de Dziga Vertov confronta-nos directamente com as nossas limitações visuais: A percepção humana não consegue por si só apreender a totalidade da vida e do trabalho. E o que Vertov nos apresenta é o que havia de inconsciente à óptica natural do homem, propalando uma percepção amplificada dos sentidos que apenas poderia ser apresentada e compreendida por meio da câmara, de modo a criar um novo ser adâmico. O propósito do cineasta soviético, não era entreter o espectador, e também não se pretendia acordá-lo através de um cine-punho (Deleuze, 1983), mas mostrar o mundo pela máquina, mostrar toda a potência da câmara de filmar. Não no sentido de uma sinfonia cosmética de uma cidade e de um tempo[6] mas a exacerbação mágica do que uma miríade de kino-olhos podem dar a ver. E desta incapacidade da percepção humana, ou a falta de qualidades[7], que é colmatada pela técnica, remete-nos para aquilo que Walter Benjamin classificou como Inconsciente Óptico: «É uma natureza diferente a que fala à câmara ou aos olhos; diferente principalmente na medida que em vez de um espaço impregnado de consciência pelos homens, surge um outro embrenhado pelo inconsciente. [...] A fotografia com os seus meio auxiliares, o retardador, as ampliações, permite-lho. Deste inconsciente óptico só se tem conhecimento através da fotografia, da mesma forma que só através da psicanálise se tem conhecimento do inconsciente instintivo.» (Benjamin, 1931: 119). Ou seja, as tecnologias do visual permitem aceder àquilo que o olho humano não se apercebe naturalmente e aquilo que o inconsciente óptico fornece, vai para além do que a própria natureza poderia oferecer ao homem. Será então o colocar disponível de um novo mundo, um mundo miniaturizado, um mundo expandido, um mundo em movimento.
O exemplo cinematográfico que escolhemos, o caleidoscópio de imagens de Vertov, qual elogio ao manifesto futurista de Marinetti, anuncia todas as potencialidades do kino-olho. Este kino-olho põe à disposição, ele mostra, dá a ver e nesse dar a ver manipula. Transforma-se. Produz sentido, e um sentido que não se circunscreve à linguagem do cinema, mas estende-se também à cultura. E de um olho que tudo vê e tudo mostra, uma nova realidade será traçada.
A Imagem-Técnica
«A Imagem Técnica» é o título do segundo capítulo de Ensaio sobre a Fotografia, para uma Filosofia da Técnica, de Vilém Flusser, resultado de várias conferências e publicado pela primeira vez em 1983. A análise de Flusser centrar-se-á nos aparatos técnicos, nas suas implicações semióticas e na forma como produzem história. Assim, e ao longo de um trabalho dividido em nove capítulos, a fotografia é apenas abordada não como o principal objecto de estudo, mas como um modelo para a compreensão dos aparelhos-técnicos. Flusser inicia o seu segundo capítulo fixando uma definição de imagem-técnica como aquela que é produzida por aparelhos. Os aparelhos, por sua vez, são produtos da técnica que trata da aplicação de textos científicos. Já as imagens tradicionais são aquelas que precedem esses textos, sendo as imagens-técnicas aquelas que decorrem de textos «altamente evoluídos». No desdobramento desta concepções, atentemos ao seguinte excerto: «Historicamente, as imagens tradicionais são pré-históricas; as imagens técnicas são pós-históricas. Ontologicamente, as imagens tradicionais “imaginam” o Mundo; as imagens técnicas imaginam os textos que imaginam o mundo.» (Flusser, 1998: 33)
Ora estabelecendo um paralelo que vê a imagem-técnica ser, em si mesma e pelo seu modo de existência, uma máquina. E é com base na mecanologia de Gilbert Simondon e da sua obra On the Mode of existence of Technical Objects que procedemos a tal correspondência. Se não vejamos: Uma imagem-técnica funciona como uma máquina e é esse grau de identificação ou semelhança que lhe confere uma posição histórica e ontológica diferente das imagens tradicionais. Historicamente são diferentes das imagens tradicionais porque as imagens técnicas produzem relações, ou porque se transduzem[8] em um cem número de novas ligações. Ontologicamente descobrimos como, partindo de Simondon, são estruturas que se vão individuando rumo a uma concretização[9].
A magia imagética ritualiza os programas e não os mitos como no caso da magia pré-histórica das imagens tradicionais, e irá emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceptualmente (Flusser: 1998, 36). Logo, as imagens técnicas substituem a consciência histórica porque substituem os textos. Ou, retomando o nosso argumento inicial deste capítulo, precisamente porque são máquinas, produzem novas relações, ou discursos. Por isso, dirá Flusser, que a invenção de imagens técnicas é comparável à invenção da escrita. No entanto, encontramos mais à frente, neste capítulo auxiliar para o nosso trabalho, que Flusser expõe alguma desconfiança em relação às imagens técnicas porquanto estas falseiam o conhecimento científico, substituindo ainda as imagens tradicionais (Flusser, 1998: 38) São, segundo o filósofo, «ruins», «falsas» e «feias» porque se levantam como «barragens» onde tudo desemboca em vez de fluir. Mas respondendo a esta desconfiança de Vilém Flusser, a perspectiva de Gilbert Simondon poderá servir como apaziguadora desta falta de confiança perante tais imagens técnicas, respondendo com uma reforma cultural: o Homem deverá incluir a máquina/imagem-técnica na sua cultura, e não se entregar numa aporia bipolarizada entre tecnofobia, ou tecnofilia. Ou seja, o ser humano deverá organizar uma sociedade que integra as máquinas, ou as imagens técnicas, procurando agir como um maestro que dirige músicos (Simondon, 1980: 13).
A Câmara de Filmar
«Man invents, discovers, finds (eurisko), imagines (mekhane), and realizes what imagines: prostheses, expedients. A pros-thesis is what is place in front that is, what is outside, outside what it is placed in front of.» (Stiegler, 1998: 193) Desde o rosto de Narciso espelhado na água, que o homem imagina fixar imagens. E pelo desejo de fixar, dá-se à possibilidade de criar uma história da imagem do homem[10]. O homem passa a fazer-se com aquilo que imagina. E numa incessante batalha contra a extinção, poderíamos até supor que o homem tem imaginado desde sempre a câmara de filmar: uma linguagem que falasse a memória eterna. Por outras palavras, o homem deseja ver-se reflectido em tudo o que reluz, para se fixar no tempo. Daí que tenha inicialmente imaginado e edificado um mundo à imagem de Deus; imaginou e pintou um céu, uma vida eterna, e, um inferno (também ele perpétuo). Ou seja um mundo simbólico.
Com o surgimento da câmara de filmar, a mão passou «a desencadear um processo programado em máquinas automáticas, que não só exteriorizam o utensílio, o gesto, e a motricidade, como invadem o domínio da memória e do comportamento maquinal.»(Leroi-Gourhan, 1990b: 38-39). E neste acto de extensão, a câmara de filmar, que se individuou desde a câmara escura[11], inscreve-se como uma prática protésica e também como uma ortótese que rectifica a nossa percepção, que invade o domínio da memória e passa também a estruturar como e o que se vê.
Com a emancipação do dispositivo técnico[12], o cinema “libertou-se”, e de imagens em movimento, passamos para um movimento outro: a imagem-movimento[13]. «[...] o plano deixará de ser uma categoria espacial para tornar-se temporal; [...].» (Deleuze, 2004: 14). Ou seja, de um movimento abstracto, resultado de cortes imóveis, para um corte móvel enquanto apreensão imediata da consciência. Na óptica deleuziana o que o cinema coloca então em perspectiva é um movimento sobre outro movimento. Deste modo a noção de corte móvel, não é um espaço percorrido, mas o acto de percorrer – uma duração. Reforçamos esta observação recorrendo ao Manual de Filmologia (2007) de João Mário Grilo: «Essencialmente, uma imagem-movimento é uma imagem relativa e dinâmica que não só pensa as relações entre as coisas (e os seus movimentos) dentro de um conjunto fechado (enquadramento) como se esforça por pensar as relações desses conjuntos entre si, e de todos eles perante uma totalidade que, por definição, permanece Aberta (o papel da montagem).» (Grilo, 2007:31)
A Montagem
Esta abertura, relação entre parte e todo, é a espinha dorsal do cinema. Razão pelo qual Serguei Eisenstein descreveu a montagem como o Todo do filme – a Ideia[14]. Ou seja, o modo como os fotogramas se interligam e relacionam, expressam uma totalidade que vai além do plano informativo ou simbólico. Há um terceiro sentido, que Roland Barthes tão bem aponta[15], que surge da tessitura de e entre imagens. E neste colocar em aberto, que é o papel da técnica de montagem, nomeamos Bernard Stiegler em Technics and Time, 1 – The Fault of Epimetheus, que toma como objecto de estudo a técnica apreendida como o horizonte de toda a possibilidade de vir e toda a possibilidade de um futuro. Ou seja, se a essência da técnica não é a técnica em si mas a produção de sentido; o que podemos conferir do retrato de O Homem da Câmara de Filmar é, também, um retrato[16] do poder-ser, de um aparecer, de uma produção de sentido através da linguagem do cinema. Recorremos a Julia Kristeva, com a sua obra História da Linguagem (1974), para reforçar a ideia de linguagem do cinema: «O cinema não copia de um modo «objectivo», naturalista ou contínuo uma realidade que lhe é proposta: corta sequências, isola planos, e recombina-os através de uma nova montagem. O cinema não reproduz coisas: manipula-as, organiza-as, estrutura-as. E só na nova estrutura obtida pela montagem dos elementos é que estes ganham sentido.» (Kristeva, 1974: 361). Kristeva continua expondo, que outra tendência que se opõe à montagem, como princípio de linguagem do cinema, é a orientação para a narratividade. Ou seja, além da montagem o que está também implicado, na linguagem do cinema, é um movimento diegético. Um corte e juntura cinematográfico que tem sempre como horizonte a produção de um sentido. Algo que podemos considerar para a linguagem do cinema, num sentido lato, como movimento, que não só armazena como transporta ou traduz a experiência de um modo para outro.
Será que a linguagem do cinema projecta a priori um futuro para o Homem? Bernard Stiegler é muito concreto quando afirma que a técnica evoluí mais rapidamente que a cultura (Stiegler, 1998). Sendo assim, poderíamos desde já corresponder com a verdade do star-system, que foi criada pela câmara de filmar[17] - um mundo cultual baseado na idolatria - estrutura vazia e meramente estética. Mas o que pretendemos alcançar com esta interrogação é algo mais atípico.
Notas Finais e a Técnica Cut-up
O Homem com uma câmara de filmar é um manifesto escrito em película: invoca a mobilização pela técnica que se respirava no princípio do século XX. Vertov, atento ao mundo que o rodeava, fixou a aceleração que muitos se recusavam a ver, que muitos ainda procuram ignorar. O mundo nunca mais parou, tudo fora posto em movimento. Esta obra da 7ª arte, faculta de modo constante uma viagem entre tempos, que não fica apenas por aquilo que se vê, mas a forma como se vê e o que se dá a ver. É uma espécie de meta-realismo colocado em mise-en-abyme, onde o “toque” de arte é dado principalmente pelo potencial da máquina e não apenas pelo lugar que o homem ocupa. É uma captura memorial que se constrói de modo a projectar um futuro possível. E o que William S. Burroughs propõe é um método que nos é extremamente proveitoso: O cut-up é uma técnica que vive da herança dos poemas dadaístas, uma vez que presume entrelaçar inscrições com tantas outras inscrições. E tudo pode ser relacionado: texto, som, imagem. Portanto, tudo o que foi capturado pode ser reinscrito numa nova forma através do método cut-up. É assim que se «estabelecem novas conecções entre imagens e o campo de visão que, a partir daí, se expande» (Burroughs, 1978: 5). Mas o que queremos salientar desta técnica de Montagem é que podem inclusivamente ser proféticas. Essas novas composições, deixam em aberto a possibilidade de apresentar uma experiência ou evento ainda por vir, para além de representarem algo que já foi. É pois esse poder de antecipação que se liberta num cut-up. Tudo isto porque toda a linguagem é essencialmente mistificação. Tudo é ficção (Burroughs, 1978: 15). E tudo está em movimento.
A imagem produzida por dispositivos ópticos, isto é, a imagem técnica, permite uma exploração de tudo o que nos rodeia, e daquilo que não se vê[18]. E por intermédio da Montagem, a imagem poderá revelar mais sobre a realidade, do que a própria realidade percepcionada pelo olho humano. O olho humano é limitado em receber toda a realidade a todo o momento, o que poderá ter levado o homem, desde o seu alvor, a imaginar uma prótese ortotésica – o kino-eye.
«I am kino-eye, I am a mechanical eye. I, a machine, show you the world as only I can see it.»
O que assistimos com O Homem com uma câmara de filmar é a transmissão de um saber que poderá ter resistido à época que lhe foi contemporânea; trabalhando mais no futuro do que no presente; ou, até ensaiar um incisão no presente e libertar um futuro ainda por vir. Um presente-futuro que concretizará «a man more perfect than Adam». (Vertov, 1919)
Referências Bibliográficas:
Barthes, R. 1982. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Edições 70
Benjamin, W. [1936-39] 1992. «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade técnica». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 71-113. Lisboa: Relógio D’Água.
Benjamin, W. [1931] 1992. «Pequena História da Fotografia». In Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita. pp. 115-135. Lisboa: Relógio D’Água.
Burroughs, W. Brion, G. [1978] 2010. The Third Mind. New York: The Viking Press.
Deleuze, G. [1983] 2009. A Imagem-Movimento: Cinema 1. Trad. Sousa Dias. Lisboa: Assírio & Alvim
Eisenstein, S.M. [1929] 1977. «The Filmic Fourth Dimension». In Film Form. New York: Harvest Book
Eisenstein, S.M. 1974, Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução, trad. C. Braga e I. Canelas. Porto: Editorial Presença
Francastel, P. [1983] 1987. Imagem, Visão e Imaginação. Trad. Fernando Caetano. Lisboa: Edições 70
Grilo, J. M. 2007. As Lições do Cinema, Manual de Filmologia. Lisboa: Edições Colibri/FCSH-UNL
Kristeva, J. [1969] 1999. História da Linguagem. trad. M. Barahona. Lisboa: Edições 70.
Leroi-Gourhan, A. [1964] 1990. O Gesto e a Palavra. Vol.1. Técnica e Linguagem. trad. V. Gonçalves. Lisboa: Edições 70.
Merlau-Ponty, M. [1960] 2006. O olho e o espírito. Trad. Luís Manuel Bernardo. Lisboa: Vega
Simondon, G. [1958] 1980. On the Mode of Existence of Technical Objects. Trad. Ninian Mellamphy. Ontario: University of Wetern Ontario.
Stiegler, B. [1994] 1998. Technics and Time 1: The Fault of Epimetheus. Trad. R. Beardsworth e G. Collins. Stanford: Stanford University Press.
[1] Consideraremos a linguagem do cinema, como aquilo que Serguei Eisenstein considerou como a espinha dorsal do cinema: A Montagem. Eisenstein afirma o seguinte em Da Revolução à Arte, Da Arte à Revolução (1974): «Sabe-se que foi a MONTAGEM o meio fundamental (e único) que conduziu o cinema a tão alto grau de eficácia. [...] O sucesso dos filmes soviéticos nas telas de todo o mundo deve-se, em grande parte, a um certo número de princípios de montagem que fomos os primeiros a descobrir e consolidar.» (Eisenstein, 1974: 34)
[2] Embora não seja a nossa intenção aprofundar este conceito, pelas definições quer de Gilbert Simondon, quer de Carl Jung, individuação é um processo evolutivo. Uma transformação ontogénica do objecto técnico. E para o nosso objecto de estudo, podemos comparar que, tal como o martelo que se individuou até se tornar em martelo pneumático, também a câmara escura se individuou até à câmara de filmar. Ou seja, é o tornar-se, procedendo por «saltos», em equilíbrios sucessivos, individuação «corresponde ao aparecimento de fases no ser» (Simondon, 1958: 13)
[3] Uma prótese é algo exterior ao corpo, tal como a ortótese. A diferença que poderemos encontrar será na sua aplicabilidade, no seu uso, na utilidade. No sentido lato entendemos a prótese como um elemento que se acrescenta na ausência de algo, enquanto a ortótese, que vêm do grego ortho, que significa reto, é um objecto que corrige sobre algo que existe.
[4] A Perspectiva faz ver para além de/através de – como que um elemento de transparência. Inicialmente definida como “perspectiva artificalis”, tem como pressuposto a criação de um campo perceptivo ilusoriamente tridimensional que segundo Jonathan Crary em Techniques of the Observer aponta a perspectiva como uma espécie de híbrido entre a imagem-técnica e a imagem tradicional.
[5] Fazemos aqui menção a uma espécie de responsabilização das imagens criadas por aparelhos técnicos, porque no fim não se trata de uma construção subjectiva, mas uma construção mediada: o olhar do pintor sobre uma paisagem é sempre um olhar subjectivo, mas o olhar do fotógrafo e a mão que segura a máquina, deverá ser apenas encarado numa lógica de ente auxiliar. A produção da imagem é exclusiva do apparatus técnico.
[6] Contrapondo com a obra de Walter Ruttmann: Berlin: A Sinfonia de uma Cidade (1927) que exibe uma visão citadina onde a câmara se coloca à distância dos seus sujeitos, como que predador envergonhado da sua própria condição natural: capturar imagens.
[7] Remetemos aqui as palavras de Bernard Stiegler para salientar a necessidade inventiva do homem para colmatar a sua falta de qualidades: «Humanity is without qualities, without predestination: it must invent, realize, produce qualities, and nothing indicates that, once produced, these qualities will bring about humanity, that they will become its qualities; for they may rather become those of technics.» (Stiegler, 1998:193-194)
[8] De ção, para usar aqui uma expressão própria ao trabalho de Gilbert Simondon, A transdução é uma operação onde um domínio submete informação a outro (Simondon; 1980, 18)
[9] Na sua obra On the Mode of Existence of Technical Objects, Simondon procura trabalhar os objectos técnicos a partir da sua ontogénese, isto é, a partir da operação de individuação.
[10] As inscrições rupestres são um relato da e na história do homem. Existem como marcas, que revelam algo que exige interpretação. A representação de um animal poderá ter vários significados, mas algo é certo: ali esteve alguém que decidiu fixar em pedra uma imagem, para ele ver, ou para outros verem.
[11] A câmara escura, um dispositivo analógico e não mais simbólico, permite captar a visão natural, onde se encontra afinidades e também descontinuidades com a noção de perspectiva e com o dispositivo fotográfico: nomeadamente na forma como pensam a reprodução do funcionamento do olho. Um fenómeno da visão com a formação de uma “pirâmide visual” que, delimitada pelos raios luminosos, se estabelece entre o objecto e o “olho ou o ponto no espaço que o representa.
[12] O desenvolvimento tecnológico que atribuiu mobilidade à câmara e a montagem, são dois aspectos que Deleuze refere como elementos constituintes da evolução do cinema.
[13] Gilles Deleuze determina a imagem-movimento como um «conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros» (Deleuze, 2004).
[14] A montagem das atracções, pensada por Eisenstein, é o somatório de textos que elaboram uma certa teoria da montagem. Tal como a própria noção de montagem no cinema, também esta teorização, deverá, funcionar como um todo. A montagem intelectual – o cine-punho que tem como alvo o espectador –, proporcionando o cinema intelectual, é para Eisenstein: «[...] the realization of revolution in the general history of culture; building a synthesis of science, art, and class militancy.» (Eisenstein, 1974: 83)
[15] Recorremos aqui às notas de Roland Barthes, onde o semiólogo francês analisa alguns fotogramas de Eisenstein. Barthes classifica três níveis de sentido: o nível informativo, «onde se acumula todo o conhecimento», o nível da comunicação. O nível simbólico, um simbolismo diegético, que será o nível da significação, e por fim o terceiro sentido: uma ideia, e somos nós que tiramos – uma imagem que não é nem informativa, nem simbólica mas uma obliquidade que não é descritível: «[...] o terceiro, aquele que vem «a mais», como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, [...].» (Barthes, 1982: 45)
[16] capturado, enquadrado e projecto pela câmara de filmar.
[17] Walter Benjamin diz: «A estranheza do actor perante o equipamento, […], é essencialmente do mesmo tipo da estranheza que se sente perante a própria imagem reflectida no espelho. Mas agora, a imagem é separável da pessoa, é transportável.» (Benjamin, 1992: 94) Benjamin continua dizendo que esta imagem é transportada para o público. E o público, aquele que dá vida ao mundo, consome imagens-técnicas, objectos de desejo, retratos de uma ficção.
[18] Acrescentamos as palavras de Merleau-Ponty: «O «qual visual» dá-me, e dá-me apenas, a presença do que não sou, daquilo que é simplesmente e plenamente. Ele fá-lo porque, como textura, é a concreção de uma universal visibilidade, de um único Espaço que separa e reúne, que sustém toda a coesão (e mesmo a do passado e do futuro, pois ela não o seria se eles não fossem partes do mesmo espaço). Qualquer coisa visual, por muito individuo que seja, funciona também como dimensão, porque se oferece como resultado de uma deiscência do Ser. Isto quer finalmente dizer que o que é próprio do visível é ter uma dobragem do invisível em sentido estrito, que ele torna presente como uma certa ausência.» (Merleau-Ponty, 2006: 67)