O que mantêm a Humanidade Viva?
Introdução
[…], proponho-me fazer uma análise crítica acerca do homem, tendo como mote a passagem do livro “Assim Falava Zaratustra” de Nietzsche: “Percorreste o caminho que vai do verme ao homem, e ainda em vós resta muito verme. Outrora fostes macacos, e mesmo agora o homem é mais macaco do que todos os macacos” (Nietzsche, 1994: 12). Procuro, então o homem-animal, recorrendo a manifestações artísticas e filosóficas.
A intenção é estruturar uma crítica à sociedade capitalista, à sociedade de consumo, onde o homem é classificado como mercadoria, onde o palco de representação, que é o mundo, parece já não ter espaço para actos Argutos de Vida. Passámos a ser números representativos de um fetichismo economicista – onde tudo é para consumo e nada é para a reflexão – onde a tirania da velocidade e do espectáculo, condiciona a nossa forma de ver e viver o mundo, anulando uma certa espiritualidade tão necessária para a compreensão e construção do sujeito.
Somos bombardeados com objectos-imagem, à velocidade de holofotes mediáticos – somos abjectos – somos animais sem consciência – somos cínicos inconscientes - e já não habitamos o verbo, nem o plano das essências, mas o fosso do luxuoso lixo que a sociedade se tornou. Onde está o animal em nós? – já não somos ovelhas pertencentes a um rebanho, somos antes...números, consumidores e consumidos, numa linha de produção de e para indivíduos personalizados, cuja a instrução máxima é..., o ferro-velho.
Analisando artistas como Joseph Beuys e Oleg Kulik, passando pela corrente filosófica do Cinismo e análise de filósofos como Nietzsche, Peter Sloterdijk, Konrad Lorenz e Giorgio Agamben, a intenção deste ensaio é indagar sobre o estádio humano, e como a arte, no entender heideggeriano, deverá ser o acontecimento que relaciona e faz sentido ao mundo, ou seja, que é através da arte que se estrutura uma crítica ao materialismo e à pretensiosa racionalidade humana.
Cada Homem um artista
Arte e religião sempre estiveram juntos no decorrer da história da humanidade. Como objecto de estudo, ou como representação, pouco se questiona acerca do poder da história simbólica. Mas o que para muitos artistas e seus intérpretes, foi uma ligação natural, essencial e orgânica entre a experiência religiosa e a representação artística, é hoje considerada como obsoleta. Uma das razões para tal acontecer, é a constante desconfiança sobre a religião, muito causado pelas próprias organizações que numa lógica de manutenção de poder, se afastaram do verdadeiro ponto que é a religião: religare. Ou seja, um voltar a ligar, numa espécie de ruptura com a cultura para um retorno à natureza.
Ao considerar os primeiros rituais como práticas artísticas, somos hoje confrontados com um estranho distanciamento desta noção. A arte contemporânea está longe de ser um exercício de espiritualidade e ligação à natureza, está antes fortemente estabelecida ao concreto das sociedades modernas e como resposta às práticas ritualistas, as artes performativas vieram ocupar esse espaço.
No entanto, como iremos analisar, através do trabalho de Joseph Beuys (Krefeld, 1921), e longe de criar uma biografia, o que nos irá ser proveitoso salientar é este jogo entre um aparente ser-xamânico e um ser-político. A arte e a performance como ferramenta de protesto. Protesto contra a sociedade capitalista e contra a mercantilização do corpo.
A experiência de morte que Joseph Beuys teve num acidente de aviação, na II Guerra Mundial, teve um considerável impacto na sua vida. À beira da morte, um grupo de tártaros nómadas toma o corpo moribundo de Beuys, e recorrendo a gordura e feltro, curam-no de forma milagrosa. Este evento tornou-se bastante significativo na sua vida e na sua obra, ao ponto de Beuys, ter demonstrado doravante um profundo respeito pela natureza e pela espiritualidade (cósmica).
Começamos aqui a traçar a nossa linha de raciocínio, entre a arte e espiritualidade, tendo como referência este artista.
A arte de Beuys, foi tudo menos convencional, e longe de ser pacífica, operava por vezes na contradição, tal como é expresso na introdução do livro Joseph Beuys – Cada Homem Um Artista (2010) escrito por Júlio do Carmo Gomes: Foi militar na II Guerra Mundial, mas tornou-se num anti-militarista; foi professor académico e teve sempre uma postura anti-académica; forte crítico ao sistema político, tão dependente da máquina partidária, mas fundou partidos políticos; intitulava-se como cristão convicto, mas criticou as igrejas cristãs...resumindo, Beuys operava dentro e fora das instituições de modo a fazer tremer as estruturas do poder. E no mundo da arte não foi diferente.
A sua arte conceptual articulada por uma forte simbologia, muito devido à sua experiência com o povo nómada, levaram Joseph Beuys a negar a convencionalidade da arte enquanto objecto. Para este artista, arte não se cinge ao canvas ou à tridimensionalidade escultórica: Óleo, pedra, mel, gordura, velas, espinhos, a cruz, a foice e o martelo, bombas pneumáticas...são elementos que Beuys utilizava, não pelas suas propriedades materiais, mas pela energia presente dos elementos, e a energia da acção - o fazer - o voltar a ligar à relação cósmica através dos elementos da natureza e dos elementos do homem.
Não era a estética mas uma ética ruidosa que regia JB. Contra o silêncio conformista e absoluto do capitalismo, Beuys afirmava que a linguagem seria a primeira forma de escultura. Produtor de um discurso e de uma praxis anti-autoritária, e por vezes adoptando uma pose de xamã, toda a sua obra era fortemente política e performativa do ponto de vista sacrificial da arte, onde certas actos de Beuys faziam lembrar procedimentos ritualistas, como por exemplo na Galerie Schmela, em Düsseldorf, onde Beuys com a cabeça coberta de mel e folhas de ouro, passeou pela exposição com uma lebre morta nos braços, chegando perto das suas obras ali expostas, toca com as patas da lebre nos seus desenhos: “[...] sentou-se num banquinho num canto mal iluminado da galeria e começou a explicar o sentido das obras ao animal morto, “porque, na realidade, não gosto de as explicar às pessoas” […] “mesmo morta, uma lebre tem mais sensibilidade e compreensão instintiva do que alguns homens, com a sua racionalidade obstinada”(Goldberg, 2007: 187). Observamos nesta acção particular de Beuys um cinismo profundo. Algo que iremos tratar mais à frente.
Após esta breve exposição da vida e do trabalho de JB, consideremos a sua vertente performativa de contestatário como se tratasse de um teatro beuysiano – que não se restringe a uma sala de teatro, mas actua no palco do mundo – através das palavras de Antonin Artaud em O Teatro e o Seu Duplo:
“[...] o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudámos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados. Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades” ( Artaud, 2006: 12).
É através da força do uso dos símbolos e do próprio artista que Beuys ganha uma dimensão que extravasa a convencionalidade imposta na sociedade. São as formas, a luz, as texturas que indicam a energia do trabalho de JB, que remete para além dos nossos sentidos. E é na integridade das performances artísticas, educativas e politicas, que surge a libertação biográfica. Beuys quando afirma: Cada Homem um Artista – não está a dizer que todos nós deveríamos ser artistas, mas que todos nós, em tudo o que fazemos, devemos agir com uma energia apaixonante. Em forma de parêntese, recorremos também às palavras de Oscar Wilde em A Alma do Homem sob o Socialismo (2002), “O próprio público é que deve tentar tornar-se artístico” (Wilde, 2002: 43). Joseph Beuys almejava a compreensão e a tomada de consciência de um conceito ampliado de arte, de modo a criar uma ruptura com a noção clássica da Arte e toda a lógica (pobre) do sujeito-mercadoria. Na introdução do livro Joseph Beuys, surge uma citação do próprio que é proveitosa para este ensaio: “Actualmente [a cultura] não tem nenhuma relação com a sociedade, e esta separação leva-nos a uma conclusão perigosa: que a cultura está estritamente ligada à lei, à produção, ao dinheiro, ao produto nacional, ao status de cada indivíduo dentro da sociedade” (Bueys, 2010: 27). Sempre erguendo a sua bandeira contra o autoritarismo da regras (do mercado e da política), JB compreendeu que a arte já não está numa perspectiva dialógica de um ideal de liberdade, e por isso discursava, quer através das palavras, quer pela sua arte, ou melhor formulado, através de toda a sua vida como Homem, a favor da acção: da democracia directa e do activismo social - Cada homem um Artista é também um Homem activo e participativo na sociedade. É através da sua energia, das suas acções que a arte de viver atribui um significado que transcende as próprias barreiras do físico – religando à natureza.
Giorgio Agamben trabalha o conceito de “aberto” (tendo como ponto de partida um curso de Heidegger), o qual permite elaborar um enquadramento na questão de “relação” como parte estruturante do ser humano. Embora este conceito de “aberto” ou “abertura” articule e separe o animal do homem: “a pedra não tem mundo (weltlos), o animal é pobre em mundo (weltarm), o homem é formador de mundo (weltbildend)”, será também como intenção deste ensaio, tentar mostrar, através da crítica presente na Obra (Vida) de Joseph Bueys, que o homem é de certo maneira pobre no seu mundo, devido à sua condição de indivíduo-mercadoria, levando-o a comportamentos, que poderão ser considerados longe de uma racionalidade, e pobres no uso crítico da razão. Tomemos, então, como exemplo as palavras de Konrad Lorenz em A Agressão – Uma História Natural do Mal (1973):
“Imaginemos um observador imparcial de outro planeta, por exemplo Marte, examinando o comportamento social do homem com a ajuda de um telescópio cujo aumento não fosse suficiente para permitir reconhecer os indivíduos e seguir o comportamento de cada um deles, mas chegasse para observar grandes acontecimentos, como batalhas, migrações de povos, etc. Nunca esse observador teria a ideia de que o comportamento humano pudesse ser dirigido pela razão, e ainda menos por uma moral responsável” (Lorenz, 1973: 247).
É por esta visão metafórica de Konrad Lorenz, que podemos realmente compreender o espírito crítico que JB navega. O ser humano, que constrói o seu mundo racional – trilhado pela lógica – acaba por viver, inconscientemente, numa espécie de aturdimento animal. Giorgio Agamben na leitura de Heidegger, em O Aberto (2002) reza o seguinte: “O modo de ser próprio do animal, que define o seu relacionamento com o desinibidor, é o aturdimento […]. Na medida em que está essencialmente aturdido e completamente absorvido no seu desinibidor, o animal não pode verdadeiramente agir (handeln) ou ter uma conduta (sich verhalten) em relação a ele: pode apenas comportar-se (sich benehmen)”(Agabem, 2002: 73). Por “desinibidor” considera-se o mundo perceptivo portador de sinais.
Podemos reflectir sobre estas palavras e argumentar que realmente o homem na sociedade de consumo se comporta como um mero consumidor, aturdido e absorto tal qual a abelha da experiência de Uexküll, que consome mel, sem constatar que não tem abdómen! Continuemos com Agamben: “A relação entre o homem e o animal, entre mundo e ambiente, parece evocar aquele íntimo diferendo (Streit) entre mundo e terra que está em jogo, segundo Heidegger, na obra de arte.” (Agamben, 2002: 101). No entender de Heidegger, será então a obra de arte que releva a verdade do ser, isto é, o que nos tira do “aborrecimento” - o que nos irá fazer despertar e reparar: Não temos abdómen!
Em oposição a Marcel Duchamp, que por meio do ready-made atribuiu ao objecto banal e anónimo da indústria de consumo a categoria de arte, subvertendo através de um processo intensificador a própria cultura, Joseph Beuys, envolveu-se na natureza. Envolve-se no feltro da condição humana, instigando que uma das possibilidades de transformar o modo de agir no quotidiano seria através da arte. É pela performance que se fere e se faz sair do aturdimento: Na natureza do dia-a-dia, do gesto comum, do acto comunicativo, na participação e no reconhecimento do outro. Uma natureza do Mundo e da Terra. E por isto podemos afirmar que Beuys é ecológico, pois para ele a natureza encontra-se em todo o lugar numa relação cósmica. Um campo energético, de ideia e acção, o que leva a uma certa incompreensão do trabalho de Bueys, devido à sua imaterialidade, e ao seu discurso que implica e implicou: “[...] uma via para a autonomia, a liberdade, e o rompimento com o poder. Não foi uma afirmação de interesses ou a composição de uma grinalda de mitos, mas uma resistência política e ideo-cultural (Beuys, 2010: 43). É uma luta contra a natureza que emerge da luta pela natureza.
Oleg Kulik – Um cínico dos tempos modernos
Segundo o livro A History of Cynism (1998) de Donald R. Dudley, os praticantes do Cinismo na Antiga Grécia eram missionários, e a sua mensagem: a vida deveria ser vivida sem restrições, e apenas seria a idade a impor alguma contenção. Considerado como um fenómeno, esta análise histórica da corrente filosófica, apresentou três aspectos não inseparáveis: uma vida errante e entregue à contemplação; um assalto a todos os valores estabelecidos; e por fim um corpo literário bem adaptado à sátira e à propaganda filosófica.
Embora tenha sido Antístenes, um discípulo de Sócrates, quem fundou esta escola de pensamento, foi Diógenes quem mais contribuiu para que o Cinismo se torna-se uma verdadeira corrente filosófica.
Diógenes, que atingiu um estatuto quase mítico, vivia despojado de qualquer tipo de comodismo, apregoando o desapego à vida material e tinha por hábito fazer tudo em público: vivia na rua dentro de um barril, e era na rua que fazia as suas necessidades e vivendo ao lado de cães, tornou-se como um cão. E este modo de viver e estar com a vida, é vista como uma das razões para a origem da palavra Cinismo. Do grego kynismós, alguns aludem que é um derivado da palavra cão: kynós.
Observando esta atitude por parte de Diógenes e de todos os cínicos, podemos constatar porque é que o Cinismo foi tão importante para a época, e como deverá também ser para os nossos dias. A indiferença a tudo, no seu estilo de vida, a ausência de vergonha, vivendo como cães na praça pública, e no sentido figurado, sendo como um cão, guardavam bem os princípios da sua filosofia, ou seja, eram leais aos seus ideais. Algo de sublinhar, é que por este tipo de atitude, e ainda numa leitura metafórica, sendo um cão, um animal exigente que pode distinguir entre aqueles que são amigos e aqueles que são inimigos, os Cínicos reconheciam aqueles que eram “correctos” para os ensinamentos desta corrente filosófica, e para os que não eram merecedores...o Cínicos ladravam.
Dito isto, convidamos para o nosso ensaio: Oleg Kulik.
Oleg Kulik (Kiev, 1961) é um artista performativo, que foi bastante controverso devido às suas performances arrojadas e radicais no espaço público. Sendo conhecido pelas suas demonstrações ao vivo comportando-se como um cão, Kulik através dos seus actos expressivos, apelava a um descontentamento da humanidade. E tal como Diógenes na Grécia Antiga, Kulik encarna o papel de cão, como uma forma de protesto ao desencanto reinante na sociedade da ex-União Soviética e ao caos político e social da altura. Neste papel de cínico destrutivo, Kulik através da dor que infligia a si mesmo, ou ao próprio público (chegando a morder pessoas em exposições), proclamava a sua crítica à cultura, e agindo como um animal estava no acto de pura consciência da excitação humana, ou seja, Kulik propõe uma inversão nos papéis da relação homem-animal para animal-homem.
Em Oleg Kulik Art Animal, este artista afirma que é suficiente para um ser humano se tornar o Outro, a fim de ser um animal, para caminhar em quatro “patas” quando se perde a vergonha, adquirindo o sentido de cheiro, e que neste processo de identificação, ou de Reconhecimento nos termos de Paul Ricoeur, identificando-se com um animal, como um não-antropomorfo Outro, não se está a perder a ligação com a espécie humana. Pelo contrário. Reconhecendo as paixões animais de cada um com tal consideração, garante a atenção por parte de outras pessoas. A performance de Kulik caminha nesta energia especulativa, que é tida como indecente dentro dos espaços culturais de elite e dentro das fronteiras da arte. No entanto, este “cão russo”, coloca em cena e chama à atenção para a necessidade de caminharmos sobre quatro patas, de voltarmos a re-ligar o nosso olfacto, pervertido pela sociedade capitalista de perfume barato. Kulik, igual a Diógenes, encontra prazer na manifestação como cão, apenas quando está sendo observado por outros e um homem que se comporta como um cão espera escapar do "Outro" e encontrar a verdadeira alegria, a animalidade perdida, da natureza humana.
Peter Sloterdijk, em Critique of Cynical Reason (1987), aponta algo em Diógenes, que nos poderá servir como exemplo para as performances de Oleg Kulik: “Theory and praxis are incalculably interwoven in his philosophy and there is no room for mere theoretical agreement”(Sloterdijk, 1987: 157). Também Kulik entrelaça a sua filosofia e acção, e vivendo como um cão nas suas performances, onde o seu desapego a qualquer tipo de conforto, indica acima de tudo a liberdade artística de Oleg Kulik perante o mundo espectacular das artes e perante a sociedade (espectáculo).
Conclusão
Este ensaio teve como intenção apresentar uma crítica ao materialismo dominante na sociedade moderna através de dois artistas – Joseph Beuys e Oleg Kulik, salientando a separação que reside entre o homem e a natureza, devido a uma lógica antropocêntrica, que acabou por colocar o homem como mera mercadoria. A proposta foi que, será através da arte que o homem poderá alcançar um verdadeiro conceito de liberdade, ou abertura no mundo, através de um religare cósmico, ou por outras palavras, tomando consciência do animal que existe em nós e em ligação à natureza.
Resta-nos explanar um pouco acerca das Artes Performativas. A Performance como meio de expressão artístico que se tornou reconhecido na década de 1970, passou a ser utilizado por vários artistas para transmitir as suas ideias, recusando de certo modo o objecto-arte, sendo uma re-apresentação (por vezes efémera) do planos das ideias em relação directa com o Outro.
Para a apresentação oral deste trabalho, elaborei um texto que consistia num Manifesto Animal, e à luz das diferentes vertentes da performance (A natureza da performance poderá ser: “esotérica, xamanística, educativa, provocatória, ou mero entretenimento”(Goldberg, 2007: 9)), considero que caminhei por uma performance provocatória. A minha intenção foi captar a atenção do auditório através de uma desconstrução. “Tornar inoperante a máquina que governa a nossa concepção do homem [...] (Agamben, 2002: 125), e operar no hiato que separa o homem e o animal. Finalizo este ensaio respondendo à questão que dá o título a este trabalho: O que mantêm a humanidade viva? Actos bestiais!
"You gentlemen who think you have a mission To purge us of the seven deadly sins Should first sort out the basic food position Then start your preaching, that's where it begins You lot, who preach restraint and watch your waist as well Should learn, for once, the way the world is run However much you twist, or whatever lies that you tell Food is the first thing, morals follow on So first make sure that those who are now starving get proper helpings, when we all start carving What keeps mankind alive? What keeps mankind alive? The fact that millions are daily tortured, stifled, punished, silenced and oppressed Mankind can keep alive thanks to its brilliance in keeping its humanity repressed And for once you must try not to shirk the facts Mankind is kept alive by bestial acts!"
Written by: Original words by Bertolt Brecht
We are Born into this
Referências Bibliográficas:
Agamben, G. (2002), O Aberto, Lisboa: Edições 70
Artaud, A. (2006), O Teatro e o seu Duplo, Lisboa: Fenda Edições
Beuys, J. (2010), Cada Homem um Artista, Porto: 7 Nós
Dudley, D. (1998), A History of Cynism, Bristol: Booksprint
Goldberg, R. (2007), A Arte da Performance, Lisboa: Orfeu Negro
Kulik, O. (2001), Art Animal, London, PJ
Lorenz, K. (1973), A Agressão Uma História Natural do Mal, Lisboa: Moraes Editores
Nietzsche, F. (1994), Assim Falava Zaratustra, Lisboa: Guimarães Editores
Sloterdijk, P. (2001), Critique of Cynical Reason, Minneapolis: University Minnesota
Wilde, O. (2002), A Alma do Homem sob o Socialismo, Lisboa: Vega
[…], proponho-me fazer uma análise crítica acerca do homem, tendo como mote a passagem do livro “Assim Falava Zaratustra” de Nietzsche: “Percorreste o caminho que vai do verme ao homem, e ainda em vós resta muito verme. Outrora fostes macacos, e mesmo agora o homem é mais macaco do que todos os macacos” (Nietzsche, 1994: 12). Procuro, então o homem-animal, recorrendo a manifestações artísticas e filosóficas.
A intenção é estruturar uma crítica à sociedade capitalista, à sociedade de consumo, onde o homem é classificado como mercadoria, onde o palco de representação, que é o mundo, parece já não ter espaço para actos Argutos de Vida. Passámos a ser números representativos de um fetichismo economicista – onde tudo é para consumo e nada é para a reflexão – onde a tirania da velocidade e do espectáculo, condiciona a nossa forma de ver e viver o mundo, anulando uma certa espiritualidade tão necessária para a compreensão e construção do sujeito.
Somos bombardeados com objectos-imagem, à velocidade de holofotes mediáticos – somos abjectos – somos animais sem consciência – somos cínicos inconscientes - e já não habitamos o verbo, nem o plano das essências, mas o fosso do luxuoso lixo que a sociedade se tornou. Onde está o animal em nós? – já não somos ovelhas pertencentes a um rebanho, somos antes...números, consumidores e consumidos, numa linha de produção de e para indivíduos personalizados, cuja a instrução máxima é..., o ferro-velho.
Analisando artistas como Joseph Beuys e Oleg Kulik, passando pela corrente filosófica do Cinismo e análise de filósofos como Nietzsche, Peter Sloterdijk, Konrad Lorenz e Giorgio Agamben, a intenção deste ensaio é indagar sobre o estádio humano, e como a arte, no entender heideggeriano, deverá ser o acontecimento que relaciona e faz sentido ao mundo, ou seja, que é através da arte que se estrutura uma crítica ao materialismo e à pretensiosa racionalidade humana.
Cada Homem um artista
Arte e religião sempre estiveram juntos no decorrer da história da humanidade. Como objecto de estudo, ou como representação, pouco se questiona acerca do poder da história simbólica. Mas o que para muitos artistas e seus intérpretes, foi uma ligação natural, essencial e orgânica entre a experiência religiosa e a representação artística, é hoje considerada como obsoleta. Uma das razões para tal acontecer, é a constante desconfiança sobre a religião, muito causado pelas próprias organizações que numa lógica de manutenção de poder, se afastaram do verdadeiro ponto que é a religião: religare. Ou seja, um voltar a ligar, numa espécie de ruptura com a cultura para um retorno à natureza.
Ao considerar os primeiros rituais como práticas artísticas, somos hoje confrontados com um estranho distanciamento desta noção. A arte contemporânea está longe de ser um exercício de espiritualidade e ligação à natureza, está antes fortemente estabelecida ao concreto das sociedades modernas e como resposta às práticas ritualistas, as artes performativas vieram ocupar esse espaço.
No entanto, como iremos analisar, através do trabalho de Joseph Beuys (Krefeld, 1921), e longe de criar uma biografia, o que nos irá ser proveitoso salientar é este jogo entre um aparente ser-xamânico e um ser-político. A arte e a performance como ferramenta de protesto. Protesto contra a sociedade capitalista e contra a mercantilização do corpo.
A experiência de morte que Joseph Beuys teve num acidente de aviação, na II Guerra Mundial, teve um considerável impacto na sua vida. À beira da morte, um grupo de tártaros nómadas toma o corpo moribundo de Beuys, e recorrendo a gordura e feltro, curam-no de forma milagrosa. Este evento tornou-se bastante significativo na sua vida e na sua obra, ao ponto de Beuys, ter demonstrado doravante um profundo respeito pela natureza e pela espiritualidade (cósmica).
Começamos aqui a traçar a nossa linha de raciocínio, entre a arte e espiritualidade, tendo como referência este artista.
A arte de Beuys, foi tudo menos convencional, e longe de ser pacífica, operava por vezes na contradição, tal como é expresso na introdução do livro Joseph Beuys – Cada Homem Um Artista (2010) escrito por Júlio do Carmo Gomes: Foi militar na II Guerra Mundial, mas tornou-se num anti-militarista; foi professor académico e teve sempre uma postura anti-académica; forte crítico ao sistema político, tão dependente da máquina partidária, mas fundou partidos políticos; intitulava-se como cristão convicto, mas criticou as igrejas cristãs...resumindo, Beuys operava dentro e fora das instituições de modo a fazer tremer as estruturas do poder. E no mundo da arte não foi diferente.
A sua arte conceptual articulada por uma forte simbologia, muito devido à sua experiência com o povo nómada, levaram Joseph Beuys a negar a convencionalidade da arte enquanto objecto. Para este artista, arte não se cinge ao canvas ou à tridimensionalidade escultórica: Óleo, pedra, mel, gordura, velas, espinhos, a cruz, a foice e o martelo, bombas pneumáticas...são elementos que Beuys utilizava, não pelas suas propriedades materiais, mas pela energia presente dos elementos, e a energia da acção - o fazer - o voltar a ligar à relação cósmica através dos elementos da natureza e dos elementos do homem.
Não era a estética mas uma ética ruidosa que regia JB. Contra o silêncio conformista e absoluto do capitalismo, Beuys afirmava que a linguagem seria a primeira forma de escultura. Produtor de um discurso e de uma praxis anti-autoritária, e por vezes adoptando uma pose de xamã, toda a sua obra era fortemente política e performativa do ponto de vista sacrificial da arte, onde certas actos de Beuys faziam lembrar procedimentos ritualistas, como por exemplo na Galerie Schmela, em Düsseldorf, onde Beuys com a cabeça coberta de mel e folhas de ouro, passeou pela exposição com uma lebre morta nos braços, chegando perto das suas obras ali expostas, toca com as patas da lebre nos seus desenhos: “[...] sentou-se num banquinho num canto mal iluminado da galeria e começou a explicar o sentido das obras ao animal morto, “porque, na realidade, não gosto de as explicar às pessoas” […] “mesmo morta, uma lebre tem mais sensibilidade e compreensão instintiva do que alguns homens, com a sua racionalidade obstinada”(Goldberg, 2007: 187). Observamos nesta acção particular de Beuys um cinismo profundo. Algo que iremos tratar mais à frente.
Após esta breve exposição da vida e do trabalho de JB, consideremos a sua vertente performativa de contestatário como se tratasse de um teatro beuysiano – que não se restringe a uma sala de teatro, mas actua no palco do mundo – através das palavras de Antonin Artaud em O Teatro e o Seu Duplo:
“[...] o teatro nos restitui todos os conflitos em nós adormecidos com todas as suas forças, e ele dá a essas forças nomes que saudámos como se fossem símbolos: e diante de nós trava-se então uma batalha de símbolos, lançados uns contra os outros num pisoteamento impossível; pois só pode haver teatro a partir do momento em que realmente começa o impossível e em que a poesia que acontece em cena alimenta e aquece símbolos realizados. Esses símbolos que são signos de forças maduras, mas até então subjugadas e sem uso na realidade, explodem sob o aspecto de imagens incríveis que dão direito de cidadania e de existência a atos hostis por natureza à vida das sociedades” ( Artaud, 2006: 12).
É através da força do uso dos símbolos e do próprio artista que Beuys ganha uma dimensão que extravasa a convencionalidade imposta na sociedade. São as formas, a luz, as texturas que indicam a energia do trabalho de JB, que remete para além dos nossos sentidos. E é na integridade das performances artísticas, educativas e politicas, que surge a libertação biográfica. Beuys quando afirma: Cada Homem um Artista – não está a dizer que todos nós deveríamos ser artistas, mas que todos nós, em tudo o que fazemos, devemos agir com uma energia apaixonante. Em forma de parêntese, recorremos também às palavras de Oscar Wilde em A Alma do Homem sob o Socialismo (2002), “O próprio público é que deve tentar tornar-se artístico” (Wilde, 2002: 43). Joseph Beuys almejava a compreensão e a tomada de consciência de um conceito ampliado de arte, de modo a criar uma ruptura com a noção clássica da Arte e toda a lógica (pobre) do sujeito-mercadoria. Na introdução do livro Joseph Beuys, surge uma citação do próprio que é proveitosa para este ensaio: “Actualmente [a cultura] não tem nenhuma relação com a sociedade, e esta separação leva-nos a uma conclusão perigosa: que a cultura está estritamente ligada à lei, à produção, ao dinheiro, ao produto nacional, ao status de cada indivíduo dentro da sociedade” (Bueys, 2010: 27). Sempre erguendo a sua bandeira contra o autoritarismo da regras (do mercado e da política), JB compreendeu que a arte já não está numa perspectiva dialógica de um ideal de liberdade, e por isso discursava, quer através das palavras, quer pela sua arte, ou melhor formulado, através de toda a sua vida como Homem, a favor da acção: da democracia directa e do activismo social - Cada homem um Artista é também um Homem activo e participativo na sociedade. É através da sua energia, das suas acções que a arte de viver atribui um significado que transcende as próprias barreiras do físico – religando à natureza.
Giorgio Agamben trabalha o conceito de “aberto” (tendo como ponto de partida um curso de Heidegger), o qual permite elaborar um enquadramento na questão de “relação” como parte estruturante do ser humano. Embora este conceito de “aberto” ou “abertura” articule e separe o animal do homem: “a pedra não tem mundo (weltlos), o animal é pobre em mundo (weltarm), o homem é formador de mundo (weltbildend)”, será também como intenção deste ensaio, tentar mostrar, através da crítica presente na Obra (Vida) de Joseph Bueys, que o homem é de certo maneira pobre no seu mundo, devido à sua condição de indivíduo-mercadoria, levando-o a comportamentos, que poderão ser considerados longe de uma racionalidade, e pobres no uso crítico da razão. Tomemos, então, como exemplo as palavras de Konrad Lorenz em A Agressão – Uma História Natural do Mal (1973):
“Imaginemos um observador imparcial de outro planeta, por exemplo Marte, examinando o comportamento social do homem com a ajuda de um telescópio cujo aumento não fosse suficiente para permitir reconhecer os indivíduos e seguir o comportamento de cada um deles, mas chegasse para observar grandes acontecimentos, como batalhas, migrações de povos, etc. Nunca esse observador teria a ideia de que o comportamento humano pudesse ser dirigido pela razão, e ainda menos por uma moral responsável” (Lorenz, 1973: 247).
É por esta visão metafórica de Konrad Lorenz, que podemos realmente compreender o espírito crítico que JB navega. O ser humano, que constrói o seu mundo racional – trilhado pela lógica – acaba por viver, inconscientemente, numa espécie de aturdimento animal. Giorgio Agamben na leitura de Heidegger, em O Aberto (2002) reza o seguinte: “O modo de ser próprio do animal, que define o seu relacionamento com o desinibidor, é o aturdimento […]. Na medida em que está essencialmente aturdido e completamente absorvido no seu desinibidor, o animal não pode verdadeiramente agir (handeln) ou ter uma conduta (sich verhalten) em relação a ele: pode apenas comportar-se (sich benehmen)”(Agabem, 2002: 73). Por “desinibidor” considera-se o mundo perceptivo portador de sinais.
Podemos reflectir sobre estas palavras e argumentar que realmente o homem na sociedade de consumo se comporta como um mero consumidor, aturdido e absorto tal qual a abelha da experiência de Uexküll, que consome mel, sem constatar que não tem abdómen! Continuemos com Agamben: “A relação entre o homem e o animal, entre mundo e ambiente, parece evocar aquele íntimo diferendo (Streit) entre mundo e terra que está em jogo, segundo Heidegger, na obra de arte.” (Agamben, 2002: 101). No entender de Heidegger, será então a obra de arte que releva a verdade do ser, isto é, o que nos tira do “aborrecimento” - o que nos irá fazer despertar e reparar: Não temos abdómen!
Em oposição a Marcel Duchamp, que por meio do ready-made atribuiu ao objecto banal e anónimo da indústria de consumo a categoria de arte, subvertendo através de um processo intensificador a própria cultura, Joseph Beuys, envolveu-se na natureza. Envolve-se no feltro da condição humana, instigando que uma das possibilidades de transformar o modo de agir no quotidiano seria através da arte. É pela performance que se fere e se faz sair do aturdimento: Na natureza do dia-a-dia, do gesto comum, do acto comunicativo, na participação e no reconhecimento do outro. Uma natureza do Mundo e da Terra. E por isto podemos afirmar que Beuys é ecológico, pois para ele a natureza encontra-se em todo o lugar numa relação cósmica. Um campo energético, de ideia e acção, o que leva a uma certa incompreensão do trabalho de Bueys, devido à sua imaterialidade, e ao seu discurso que implica e implicou: “[...] uma via para a autonomia, a liberdade, e o rompimento com o poder. Não foi uma afirmação de interesses ou a composição de uma grinalda de mitos, mas uma resistência política e ideo-cultural (Beuys, 2010: 43). É uma luta contra a natureza que emerge da luta pela natureza.
Oleg Kulik – Um cínico dos tempos modernos
Segundo o livro A History of Cynism (1998) de Donald R. Dudley, os praticantes do Cinismo na Antiga Grécia eram missionários, e a sua mensagem: a vida deveria ser vivida sem restrições, e apenas seria a idade a impor alguma contenção. Considerado como um fenómeno, esta análise histórica da corrente filosófica, apresentou três aspectos não inseparáveis: uma vida errante e entregue à contemplação; um assalto a todos os valores estabelecidos; e por fim um corpo literário bem adaptado à sátira e à propaganda filosófica.
Embora tenha sido Antístenes, um discípulo de Sócrates, quem fundou esta escola de pensamento, foi Diógenes quem mais contribuiu para que o Cinismo se torna-se uma verdadeira corrente filosófica.
Diógenes, que atingiu um estatuto quase mítico, vivia despojado de qualquer tipo de comodismo, apregoando o desapego à vida material e tinha por hábito fazer tudo em público: vivia na rua dentro de um barril, e era na rua que fazia as suas necessidades e vivendo ao lado de cães, tornou-se como um cão. E este modo de viver e estar com a vida, é vista como uma das razões para a origem da palavra Cinismo. Do grego kynismós, alguns aludem que é um derivado da palavra cão: kynós.
Observando esta atitude por parte de Diógenes e de todos os cínicos, podemos constatar porque é que o Cinismo foi tão importante para a época, e como deverá também ser para os nossos dias. A indiferença a tudo, no seu estilo de vida, a ausência de vergonha, vivendo como cães na praça pública, e no sentido figurado, sendo como um cão, guardavam bem os princípios da sua filosofia, ou seja, eram leais aos seus ideais. Algo de sublinhar, é que por este tipo de atitude, e ainda numa leitura metafórica, sendo um cão, um animal exigente que pode distinguir entre aqueles que são amigos e aqueles que são inimigos, os Cínicos reconheciam aqueles que eram “correctos” para os ensinamentos desta corrente filosófica, e para os que não eram merecedores...o Cínicos ladravam.
Dito isto, convidamos para o nosso ensaio: Oleg Kulik.
Oleg Kulik (Kiev, 1961) é um artista performativo, que foi bastante controverso devido às suas performances arrojadas e radicais no espaço público. Sendo conhecido pelas suas demonstrações ao vivo comportando-se como um cão, Kulik através dos seus actos expressivos, apelava a um descontentamento da humanidade. E tal como Diógenes na Grécia Antiga, Kulik encarna o papel de cão, como uma forma de protesto ao desencanto reinante na sociedade da ex-União Soviética e ao caos político e social da altura. Neste papel de cínico destrutivo, Kulik através da dor que infligia a si mesmo, ou ao próprio público (chegando a morder pessoas em exposições), proclamava a sua crítica à cultura, e agindo como um animal estava no acto de pura consciência da excitação humana, ou seja, Kulik propõe uma inversão nos papéis da relação homem-animal para animal-homem.
Em Oleg Kulik Art Animal, este artista afirma que é suficiente para um ser humano se tornar o Outro, a fim de ser um animal, para caminhar em quatro “patas” quando se perde a vergonha, adquirindo o sentido de cheiro, e que neste processo de identificação, ou de Reconhecimento nos termos de Paul Ricoeur, identificando-se com um animal, como um não-antropomorfo Outro, não se está a perder a ligação com a espécie humana. Pelo contrário. Reconhecendo as paixões animais de cada um com tal consideração, garante a atenção por parte de outras pessoas. A performance de Kulik caminha nesta energia especulativa, que é tida como indecente dentro dos espaços culturais de elite e dentro das fronteiras da arte. No entanto, este “cão russo”, coloca em cena e chama à atenção para a necessidade de caminharmos sobre quatro patas, de voltarmos a re-ligar o nosso olfacto, pervertido pela sociedade capitalista de perfume barato. Kulik, igual a Diógenes, encontra prazer na manifestação como cão, apenas quando está sendo observado por outros e um homem que se comporta como um cão espera escapar do "Outro" e encontrar a verdadeira alegria, a animalidade perdida, da natureza humana.
Peter Sloterdijk, em Critique of Cynical Reason (1987), aponta algo em Diógenes, que nos poderá servir como exemplo para as performances de Oleg Kulik: “Theory and praxis are incalculably interwoven in his philosophy and there is no room for mere theoretical agreement”(Sloterdijk, 1987: 157). Também Kulik entrelaça a sua filosofia e acção, e vivendo como um cão nas suas performances, onde o seu desapego a qualquer tipo de conforto, indica acima de tudo a liberdade artística de Oleg Kulik perante o mundo espectacular das artes e perante a sociedade (espectáculo).
Conclusão
Este ensaio teve como intenção apresentar uma crítica ao materialismo dominante na sociedade moderna através de dois artistas – Joseph Beuys e Oleg Kulik, salientando a separação que reside entre o homem e a natureza, devido a uma lógica antropocêntrica, que acabou por colocar o homem como mera mercadoria. A proposta foi que, será através da arte que o homem poderá alcançar um verdadeiro conceito de liberdade, ou abertura no mundo, através de um religare cósmico, ou por outras palavras, tomando consciência do animal que existe em nós e em ligação à natureza.
Resta-nos explanar um pouco acerca das Artes Performativas. A Performance como meio de expressão artístico que se tornou reconhecido na década de 1970, passou a ser utilizado por vários artistas para transmitir as suas ideias, recusando de certo modo o objecto-arte, sendo uma re-apresentação (por vezes efémera) do planos das ideias em relação directa com o Outro.
Para a apresentação oral deste trabalho, elaborei um texto que consistia num Manifesto Animal, e à luz das diferentes vertentes da performance (A natureza da performance poderá ser: “esotérica, xamanística, educativa, provocatória, ou mero entretenimento”(Goldberg, 2007: 9)), considero que caminhei por uma performance provocatória. A minha intenção foi captar a atenção do auditório através de uma desconstrução. “Tornar inoperante a máquina que governa a nossa concepção do homem [...] (Agamben, 2002: 125), e operar no hiato que separa o homem e o animal. Finalizo este ensaio respondendo à questão que dá o título a este trabalho: O que mantêm a humanidade viva? Actos bestiais!
"You gentlemen who think you have a mission To purge us of the seven deadly sins Should first sort out the basic food position Then start your preaching, that's where it begins You lot, who preach restraint and watch your waist as well Should learn, for once, the way the world is run However much you twist, or whatever lies that you tell Food is the first thing, morals follow on So first make sure that those who are now starving get proper helpings, when we all start carving What keeps mankind alive? What keeps mankind alive? The fact that millions are daily tortured, stifled, punished, silenced and oppressed Mankind can keep alive thanks to its brilliance in keeping its humanity repressed And for once you must try not to shirk the facts Mankind is kept alive by bestial acts!"
Written by: Original words by Bertolt Brecht
We are Born into this
Referências Bibliográficas:
Agamben, G. (2002), O Aberto, Lisboa: Edições 70
Artaud, A. (2006), O Teatro e o seu Duplo, Lisboa: Fenda Edições
Beuys, J. (2010), Cada Homem um Artista, Porto: 7 Nós
Dudley, D. (1998), A History of Cynism, Bristol: Booksprint
Goldberg, R. (2007), A Arte da Performance, Lisboa: Orfeu Negro
Kulik, O. (2001), Art Animal, London, PJ
Lorenz, K. (1973), A Agressão Uma História Natural do Mal, Lisboa: Moraes Editores
Nietzsche, F. (1994), Assim Falava Zaratustra, Lisboa: Guimarães Editores
Sloterdijk, P. (2001), Critique of Cynical Reason, Minneapolis: University Minnesota
Wilde, O. (2002), A Alma do Homem sob o Socialismo, Lisboa: Vega