Leitura e Recepção de «Sobre espaços e povos» de Anselm Kiefer:
replicado em 1991
«A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu
carácter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado.»
Theodor W. Adorno
INTRODUÇÃO
«No inicio era a palavra e a palavra era Deus e desde então tem permanecido um mistério» (Burroughs, 1970)[1]. É através deste mistério[2] que as grandes obras de arte têm vindo a trabalhar nos bastidores do nosso mundo histórico, reforçando parcial e tão selectivamente um sentido de congregação, criando, assim, a noção do que é e o que deveria ser. Nesta acepção, as obras de arte dão às coisas o seu aspecto ou sentido: ajudam a estabelecer um senso de comunidade histórico do que as coisas são e o que elas dão à humanidade. Considerando que ajudam a construir esse senso de comunidade histórico, acerca do que realmente importa na vida e também o que não importa, ....
Será sobre a óptica da recepção da obra de arte, que iremos sugerir uma leitura ao trabalho do artista alemão Anselm Kiefer[3] «Sobre espaços e povos»[4].
Num primeiro momento estamos na posse de um livro mas, a obra de Kiefer não é um livro, mas sim, uma trindade textual polimórfica que repousa no interstício entre arte e política. Ou, dito de outro modo: No interstício da Estética de uma geopolítica. O que nos irá levar à reflexão sobre a própria noção desta obra de arte: pelo modo em que se apresenta – e, consequentemente, o que poderá inscrever no leitor-espectador como experiência.
Uma obra que nos remete para a posição de leitor – ao folhear o livro – e nos reenvia para o lugar de espectador - ao contemplar os desenhos de Kiefer. Uma articulação entre legível e visível – o tipográfico do manual e o imagístico do artista – um jogo entre claro e escuro.
No entanto, numa aparente aporia que nos poderia levar por caminhos tortuosos, iremos ser directos no nosso trajecto: vaguear sobre a estética da recepção – da Obra de Kiefer - segundo Hans Robert Jauss. Apoiando o nosso argumento em autores, como por exemplo, Martin Heidegger[5], Jacques Ranciére, ou Roland Barthes. Outro pensador que nos irá ajudar nesta viagem é Theodor Adorno, recorrendo ao seu texto Teoria Estética (1970). Este autor alemão, além de estabelecer uma crítica à estética (da obra de arte), também se preocupa com a dialéctica - arte e sociedade, ou seja, o impacto, ou recepção, que tem a arte na sociedade capitalista e consumista dos nossos dias.
Introdução à Estética da Recepção – Horizonte de Expectativas
Hans Robert Jauss encontra na escola marxista e na escola formalista[6] um ponto de partida, para uma história da obra literária e artística, estruturando desta maneira a Teoria da Recepção: «[...] a literatura e a arte só passam a pertencer a uma ordenação histórica organizada, quando a sucessão das obras não remete apenas para o sujeito produtor mas também para o sujeito receptor – para a interacção entre o autor e o público.» (Jauss, 1993: 48) - Por estas palavras, Jauss aponta o factor dinâmico das obras, criando uma espécie de trilogia dinâmica entre autor, obra e público, onde o sujeito receptor não é um sujeito passivo, mas, continua Jauss «[...] uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história.» (Jauss, 1993: 57) A história da obra – a história da estética – a história da arte.
Jauss concebe deste modo a relação entre leitor e literatura, ancorando-se no carácter estético e histórico da obra. Sendo o valor estético, comprovado através da comparação com outras leituras; e o valor histórico, por meio da compreensão da recepção de uma obra no momento da sua publicação: recepção do público ao longo do tempo.
A relação dinâmica entre leitor e obra, é encarada, nesta óptica, como uma construção – cultural e ideológica – previamente concebida por um conjunto de saberes. Ou seja, quando estamos perante uma obra, seja um livro, um filme, ou uma escultura, interagimos com essa obra por antecipação ou expectação[7]. Somos lançados numa espiral de memórias que poderão firmar-se pela atracção ou pela recusa: Por exemplo o género onde se insere, irá determinar a nossa relação com essa obra. O título poderá converter a aceitação de um tal livro, etc.. E é por esta dinâmica que Jauss define o Horizonte de Expectativas[8]. O académico alemão encontra na consciência colectiva uma base para este horizonte. Uma disposição geral de acolhimento à obra por parte do público. No entanto a variação do grau de horizonte de expectativas determina a “distância estética” estabelecendo “o carácter artístico de uma obra literária” (Jauss, 1993). Esta distância mede-se pela expectativa e pela obra nova, que pode mudar o horizonte - uma dimensão diacrónica, porque a mudança de horizonte pode não ser dada de imediato. Jauss por este enquadramento, debate-se contra a noção de intemporalidade, em favor de uma noção historicizante, ou seja, de um prolongamento na história através da essência da própria obra.
Em síntese, através do conceito de Horizonte de Expectativas, é-nos permitido fazer a história da obra, e não um historicismo. Uma perspectiva da temporalidade a partir da recepção – elaborada não apenas do acto de produção, mas, pela recepção (dos leitores) – de continuidades e rupturas – que envolve o que se dá a ver e está adstrito a alterações e mudanças, mediante o conhecimento prévio do leitor. Segundo Jauss o horizonte de expectativas resulta então de três factores fundamentais: A experiência prévia que o público tem com o género artístico a que a obra pertence, a forma e a temática de obras anteriores que esta obra pressupõe e por ultimo, a oposição entre a linguagem poética, mundo imaginário e realidade quotidiana.
Exposto isto, e para aquilo que nos interessa, para este texto, designamos as seguintes questões: Qual o horizonte de expectativas de «Über Räume und Völker»: «Sobre espaços e povos»? Ou, qual a implicação histórica da obra de Kiefer?
A Estética da Recepção em de «Sobre espaços e povos» de Anselm Kiefer
Iniciando a nossa leitura da obra do artista alemão, temos que levar em conta o livro que deu origem ao objecto final. Começando por delimitar e analisar o acto de recepção do próprio artista - traçando assim a constituição de um sujeito receptor (activo).
Numa primeira etapa, Anselm Keifer vê a sua atenção capturada pelo título da obra-primeira: «Räume und Völker in unserer Zeit, Ein geographisch-politisches Handbuch»: «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político»[9] (1963). Segundo declarado na entrevista, que se encontra no fim do nosso objecto de estudo, Kiefer afirma que se sentiu atraído pelo título, considerando que está lá tudo: estão os povos, está o espaço, estão os tempos. Mas, rapidamente se apercebeu que nada disso está lá dentro, afirmando que existia uma enorme discrepância entre o título e conteúdo. No entanto, em vez de rejeitar o manual, Kiefer aceitou a ruptura, criada pelo conteúdo do livro: Aquilo que nada é, pode tornar-se alguma coisa. E nada sendo, já é algo... Encontramos neste primeiro acto de recepção, o surgimento de um dos requisitos fundamentais que constitui o horizonte de expectativas: o próprio título da obra que caracteriza o contexto no qual o manual geográfico-político se insere, e toda a significação histórica. Reforcemos esta noção com as palavras de Hans Robert Jauss:
«Uma obra não se apresenta nunca, nem mesmo no momento em que aparece, como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes o seu público para uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais mais ou menos manifestos, indícios familiares ou referências implícitas. Ela evoca obras já lidas, coloca o leitor numa determinada situação emocional, cria, logo desde início, expectativas a respeito do «meio e do fim» da obra, que com o decorrer da leitura, podem ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou ainda ironicamente desrespeitadas, segundo determinadas regras de jogo relativamente ao género ou ao tipo de texto.» (Jauss, 1993: 66-67)
A obra que advém da intervenção artística, através de um processo de desconstrução, pode então ser encarada como uma resposta criativa e crítica às questões políticas que foram deixados pelo objecto anterior, e deste modo, levantar novos problemas, já que o contexto histórico em que Anselm Kiefer se insere, releva e provêm dessa problemática geopolítica. Resultado de uma relação de encadeamento, abre-se caminho para uma nova linguagem, uma nova fonte de sentido político[10].
«Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político», intervencionado em 1976, passou de um manual esquecido no tempo (matéria prima), a uma espécie de escultura textual e imagética (obra transformada). E se a recepção do manual tinha como destino sujeitos com conhecimento ou interesse em geopolítica, a nova obra do artista alemão dá origem a um novo horizonte de expectativas direccionado para um público diferente. Partindo do mesmo objecto, assistimos à mudança de leitores, e dentro do mesmo objecto: um manual didáctico torna-se objecto de arte[11].
A matriz do livro que se encontra nas nossas mãos foi exposto ao público pela primeira vez no Stadelschen Kunstinstitut em Frankfurt, entre Outubro de 1990 e Janeiro de 1991. De manual que pertencia ao campo do privado, passamos para uma obra de arte exibida na esfera pública. Este objecto transformado e exibida em público, além de se inscrever numa crítica à sociedade capitalista, pela noção de reaproveitamento, alcançando uma dimensão ecológica estética e criativa, é também portador de um sentido histórico no que respeita à transformação do espaço público e as suas implicações no acto de recepção. Ou seja, o objecto em causa é também reflexo da transformação de uma colectivização da leitura, e de uma transformação arquitectónica de espaços de leitura. A propósito do mundo subjectivo da arte em Habermas, João Pissarra Esteves diz:
«A diferenciação das ideias de mundo traz consigo uma correspondente autonomização de esferas de valor; respectivamente, para cada um dos mundos individualizados: a Arte, a Ciência, e a Moral (Política) – cada uma destas esferas de valor ancorada nos seus próprios sistemas de saber e processo de aprendizagem. A cada uma das ideias de mundo e esferas de valor podemos fazer corresponder, ainda, um conjunto de pretensões de validade e de critérios de validade próprios: a validade cognitiva (regulado pelo critério de verdade) para um mundo objectivo (ciência), a validade normativa (regulada pelo critério do justo) para o mundo social (moral-política) e a validade expressiva (regulada pelo critério da autenticidade) para um mundo interior subjectivo (arte).» (Esteves, 2011:179)
Por estas palavras sublinhamos a dinâmica na escolha de Kiefer – tendo sempre no horizonte, a recepção: De objecto de leitura do privado, assiste-se à transformação para um objecto de exibição pública. Dito de outro modo: há em «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político» um reflexo crítico da dicotomia privado/público - transformações da Esfera Pública.
Continuemos a nossa leitura, do que é agora um objecto artístico: Pelo traço visível na capa, somos indicados que se trata de um trabalho enigmático. Folheamos a obra e estamos na presença de linhas fortes, misturados com resquícios do manual. Um trabalho polimórfico que inscreve um simbolismo primitivo. Uma montagem fortemente conotada[12] exercida sobre os regimes de opacidade, onde imagem e texto se fundem e mapas insurgem re-escritos e reconfigurados pela mão do artista. Se o mundo é um livro para ser lido, Anselm Kiefer propõe um novo mundo e uma nova leitura – do mundo. Sob esta perspectiva podemos considerar que o Horizonte de Expectativas, que determina a recepção desta obra, é de elevado grau.
Englobando o limite do que se torna visível e invisível, o leitor-espectador desta obra é convidado não apenas ao estranhamento, mas ao questionamento, ou seja, um pensamento para além da estética[13]. No entanto, hoje o leitor-espectador funcionando tecnicamente numa sociedade de massas e de consumo, vivendo uma “inflação museológica” (Lipovetsky, Serroy, 2010), encontra esta tarefa de superação estética bastante complexificada: «Nas nossas sociedades, as obras funcionam como objectos de animação das massas destinados a diversificar os lazeres e a “matar” o tempo. O visitante do museu não procura uma experiência estética “pura”, mas sobretudo estímulos renovados, emoções secundárias que criam um tempo de recreação.» (Lipovetsky, Serroy, 2010: 132). O visitante do museu, ou o visitante da galeria, visto como um consumidor ideologicamente construído sob os parâmetros da sociedade de massas, depara-se com uma espécie de bloqueio para atingir a essência[14] da obra. Mas, levando em conta o trabalho que estamos a analisar, há um empreendimento no combate a essa fruição passageira. A recepção do trabalho de Kiefer deverá ser encarada como uma tentativa de desconstrução dessa inflação. A proposta para o leitor é a de ruptura com as características da sociedade de massa, no consumo de cultura. O objecto exposto na galeria - um livro – elabora uma proposta crítica à recepção. E a consubstanciação dessa crítica é a passagem de «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político», exibido na galeria, para «Sobre espaços e povos». O objecto-artístico abandonou a galeria e inscreveu-se de novo na esfera do privado. Fruto inevitável de uma reprodutibilidade técnica, hoje acedemos à obra e podemos contemplar o objecto em si[15].
Mergulhando neste livro-objecto, algo que ressalta é a sua composição de montagem. E como se tratasse de um palimpsesto[16], o que é dado é uma modernização nos modos lecturais. O que se vê são desenhos de corte e colagem. Algo que nos remete para a técnica de Cut-Up. Inicialmente uma técnica utilizada pelos dadaístas, de forma a criar um poema, derivado da escolha aleatória de palavras soltas. Mas, foi através de Brion Gysin e William S. Burroughs, que esta técnica adquiriu mais consistência na sua realização e intenção. A técnica de Cut-Up, segundo estes dois artistas, consiste em fragmentar um texto, e através de uma nova organização interna, cria-se outro texto, que segundo Burroughs poderia, inclusivamente, atingir uma dimensão profética. Burroughs numa entrevista publicada em The Third Mind (1978), afirma o seguinte acerca deste modo de montagem: «Cut-ups establish new connections between images, and one’s range of vision consequently expands. » (Burroughs, Gysin, 1978: 4).
Incorporando ao trabalho de Kiefer a intenção da técnica Cut-up, «Sobre espaços e povos», poderá servir de medium que expande a nossa visão sobre o mundo, sobre os povos e sobre espaços. Arquitectando no leitor uma “objectiva” crítica e política em resposta ao que é imposto pelo sistema capitalista e pela indústria cultural – uma ordem social. Contra esse sistema, corroboramos com as palavras de Adorno: «A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte da sublimação.» (Adorno, 2008: 21). Na visão de Heidegger, para uma obra de arte funcionar, isto é, para que possa ajudar a focar e preservar um mundo de significado para um público, esta obra deverá manter uma tensão essencial entre o mundo de significados e o misterioso fenómeno da terra[17]. A obra de Kiefer, qual dispositivo de mediação, funciona deste modo em silêncio[18], mantendo uma espécie de santidade do decifrável dentro do próprio mundo de significados que ela transmite – num jogo de desvelamento – entre legibilidade e visibilidade, opacidade e transparência.
Considerando a obra de arte como um elemento de mediação, que estabelece um mundo de significados, no qual escolhas podem ser feitas, a implicação histórica[19] da obra de Kiefer passará, não (apenas) pelo artista, mas (principalmente) pela recepção e seus efeitos, nos leitores-espectador. Terminamos com as palavras de Marcel Duchamp:
«The creative act takes another aspect when the spectator experiences the phenomenon of transmutation: through the change of inert matter into work of art, an actual transubtantiation has taken place, and the role of the spectator is to determine the weigh of the work on the esthetic scale. All in all, the creative act is not performed by the artist alone, the spectator brings the work in contact with the external world by deciphering and interpreting its inner qualification and thus adds his contribution to the creative act. This becomes even more obvious when posterity gives a final verdict and sometimes rehabilitates forgotten artists.»[20]
Referências Bibliográficas:
Adorno, T. [1970] 2008. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70
Babo, M. 1993. A Escrita do Livro. Lisboa: Vega
Barthes, R. [1985] 2007. Elementos de Semiologia. Lisboa: Edições 70
Burroughs, W. [1970] 2010. A Revolução Electrónica. Trad. Maria Leonor Teles e José Augusto Mourão. Lisboa: Vega.
Burroughs, W. Brion G. [1978] 2010. The Third Mind. New York: The Viking Press.
Esteves, J. 2011. Sociologia da Comunicação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Heidegger, M. [1977] 2005. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70
Inwood, M. 1999. A Heidegger Dictionary. Oxford: Blackwell Publishers Ltd
Jauss, H. 1993. A Literatura como Provocação: A história da Literatura como provocação literária. Lisboa: Vega
Kiefer, A. 1991. Über Räume und Völker. Frankfurt: Suhrkamp Taschenbuch
Lipovetsky, G. Serroy, J. [2008] 2010. A Cultura-Mundo – resposta de uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70
Rancière, J. [2008] 2010. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro
[1] William S. Burroughs em a: A Revolução Electrónica (1970)
[2] Damos uma ligeira enfâse ao sentido de mistério pelo facto de induzir uma espécie de suspense, presente no cinema e na literatura, e deste modo, na obra de arte, como algo que se vai revelando.
[3] Anselm Kiefer nascido a 8 de Março de 1945, em Donaueschingen, Alemanha, entrou para o mundo da arte no fim dos anos 60 do século passado. A década de 60 ficou especialmente marcada e caracterizada por um redução da arte em favor à ideologia, à filosofia, e até uma auto-proclamação xamânica por parte dos artistas. Algo que se compreende, já que Kiefer estudou sobre a alçada do artista alemão Joseph Beuys - acabando por influenciar profundamente o seu trabalho. A vasta obra deste artista passa pela fotografia, pela escultura, pintura e pelo design de livros: Kiefer intervêm directamente nos livros, criando um novo objecto.
[4] Não será nossa intenção fazer uma leitura visual página por página, mas sim um visão mais geral, analisando esta obra como objecto (de arte).
[5] Professor de Hans Robert Jauss
[6] Jauss iniciou a sua jornada partindo da escola marxista e formalista, mas é importante salientar, que os estudos de ambas as escolas eram limitadas, para uma Teoria da Recepção, no modo como consideravam o lugar do leitor. Vejamos as suas palavras: «A escola formalista apenas necessita do leitor como sujeito da percepção, cuja função é a de, seguindo as incitações do texto, discernir a sua forma e descobrir os seus procedimentos. […] Ao inverso, a escola marxista identifica a experiência espontânea do leitor com os interesses científicos do materialismo histórico que pretende descobrir na obra literária relações entre a super-estrutura e a infra-estrutura.» (Jauss, 1993: 56). Ou seja, a relevância ao leitor era como que secundária ou complementar.
[7] A expectação tem a ver, inserida na sociedade de massas, com questões de oferta e consumo. O kitsch, por exemplo, poderá ser encarado como um fenómeno onde a expectativa é bastante reduzida já que o seu propósito é o mero consumo e não a contemplação.
[8] Conceito axiomático para a Teoria da Recepção
[9] Este manual, que foi encontrado pelo artista num antiquário, apresentando uma compilação de mapas com pequenos textos descritivos, expondo a história mundial, o trânsito à escala global, os continentes e as divisões criadas pelo Pacto de Varsóvia - O Tratado de Varsóvia, assinado em Maio de 1955, estabeleceu uma aliança militar entre os países da Europa do Leste, sendo encarado como uma resposta à união entre a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América (NATO). A Alemanha, sobre este contexto, tornou-se uma representação desta divisão, dando origem ao muro de Berlim. No final da década de 80, as crises políticas na Europa do Leste, e queda do muro de Berlim, dão por terminado o período da Guerra Fria.
[10] Recorremos às palavras de Jacques Rancière em O Espectador Emancipado (2010): «[...] a rotura estética que instalou uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma rotura da relação entre as produções das diversas modalidades artísticas de saber-fazer e fins sociais definidos, entre formas sensíveis, as significações que nelas podemos ler e os efeitos que podem produzir. […] É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por esta via que a arte, dentro do regime da separação estética, toca a política.» E é pela ruptura estética que o trabalho de Kiefer adquire uma dimensão eminentemente política. (Rancière, 2010: 89)
[11] Este tornar-se arte, justificamos com as palavras de Adorno em Teoria Estética (2008), remetendo também para o carácter histórico e premonitório das obras de arte: «A definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se.» (Adorno, 2008: 14)
[12] Roland Barthes em Elementos da Semiologia (2007), ajuda-nos a compreender este meio conotativo no trabalho de Kiefer: «[...] o primeiro sistema constitui então o plano de denotação e o segundo sistema (extensivo ao primeiro) o plano de conotação. Portanto, dizemos que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é ele próprio constituído por um sistema de significação; os casos correntes de conotação são constituídos evidentemente pelos sistemas complexos em que a linguagem articulada forma o primeiro sistema (é, por exemplo, o caso da literatura).» (Barthes, 2007: 87-88) O semiólogo francês continua «Quanto ao significado de conotação, esse tem um carácter simultaneamente geral, global e difuso: é, [...], um fragmento de ideologia – [...]; a ideologia é em suma a forma (no sentido hjelmsleviano) dos significados de conotação, [...].» (Barthes, 2007: 89-90), ou seja, a conotação é uma construção cultural, e através de uma re-construção visual e gráfica, Kiefer propõe algo de novo.
[13] Para Martin Heidegger uma das suas preocupações (crítica) é o modo como a estética nos poderá moldar. Heidegger pensa que só um pensamento pós-estética sobre a arte nos pode permitir reconhecer e restaurar o verdadeiro significado da arte, ajudando-nos a conferir como a arte trabalha para moldar o nosso sentido básico do que é e o que importa.
[14] Heidegger em A Origem da Obra de Arte (2005) diz: [...] a pergunta pela origem da obra de arte converte-se em pergunta pela essência da arte. Mas porque tem de se deixar em aberto a questão de saber se e como a arte em geral existe, tentaremos encontrar a essência da arte onde, sem sombra de dúvida, a arte efectivamente reina. A arte encontra-se na obra de arte.» (Heidegger, 2005:12)
[15] Maria Augusta Babo, em A escrita do livro (1993) afirma o seguinte acerca do carácter reprodutível do livro: «Ao torna-se impresso, o livro privatiza-se, isto é, deixa de estar unicamente depositado nas bibliotecas, lugares-comuns, para integrar o conjunto de bens do espaço burguês. Esta privatização implica uma cada vez maior individualização da percepção da escrita de modo a fazê-la coincidir total e definitivamente com a concepção actual da leitura, fenómeno que marca a modernidade, [...] (Babo, 1997: 19) – Kiefer ao propor a reprodução do seu trabalho convida o leitor-consumidor a entregar-se calmamente à leitura. Um convite crítico ao consumo exacerbado
[16] Palimpsesto era o resultado de uma técnica de aproveitamento de papiro, tendo em conta o elevado custo deste suporte na Idade Média.
[17] Heidegger contrapõe Terra a mundo: «A world of human products and activities is established by taming and utilizing the Earth on which it rest. [...] Earth is revealed as Earth by the world» (Inwood, 1999: 50).
[18] A leitura “silenciosa” permite uma leitura rigorosa, tal como era praticado nos Mosteiros, como um exercício de meditação e abstinência. Embora nos nossos dias, deva ser inserida no contexto de uma leitura moderna, ou seja, uma leitura que se privatizou.
[19] Trazemos aqui as palavras de Hans Robert Jauss: «A implicação histórica manifesta-se no facto de a interpretação dos primeiros leitores se poder desenvolver e enriquecer, de geração em geração, constituindo uma cadeia de recepções, que decidirá sobre a importância histórica de uma obra e sobre o seu destaque estético» (Jauss, 1993: 58)
[20] Palestra ministrada por Marcel Duchamp, intitulada The Creative Act (1957) – consultada on-line em: http://www.cathystone.com/Duchamp_Creative%20Act.pdf
carácter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado.»
Theodor W. Adorno
INTRODUÇÃO
«No inicio era a palavra e a palavra era Deus e desde então tem permanecido um mistério» (Burroughs, 1970)[1]. É através deste mistério[2] que as grandes obras de arte têm vindo a trabalhar nos bastidores do nosso mundo histórico, reforçando parcial e tão selectivamente um sentido de congregação, criando, assim, a noção do que é e o que deveria ser. Nesta acepção, as obras de arte dão às coisas o seu aspecto ou sentido: ajudam a estabelecer um senso de comunidade histórico do que as coisas são e o que elas dão à humanidade. Considerando que ajudam a construir esse senso de comunidade histórico, acerca do que realmente importa na vida e também o que não importa, ....
Será sobre a óptica da recepção da obra de arte, que iremos sugerir uma leitura ao trabalho do artista alemão Anselm Kiefer[3] «Sobre espaços e povos»[4].
Num primeiro momento estamos na posse de um livro mas, a obra de Kiefer não é um livro, mas sim, uma trindade textual polimórfica que repousa no interstício entre arte e política. Ou, dito de outro modo: No interstício da Estética de uma geopolítica. O que nos irá levar à reflexão sobre a própria noção desta obra de arte: pelo modo em que se apresenta – e, consequentemente, o que poderá inscrever no leitor-espectador como experiência.
Uma obra que nos remete para a posição de leitor – ao folhear o livro – e nos reenvia para o lugar de espectador - ao contemplar os desenhos de Kiefer. Uma articulação entre legível e visível – o tipográfico do manual e o imagístico do artista – um jogo entre claro e escuro.
No entanto, numa aparente aporia que nos poderia levar por caminhos tortuosos, iremos ser directos no nosso trajecto: vaguear sobre a estética da recepção – da Obra de Kiefer - segundo Hans Robert Jauss. Apoiando o nosso argumento em autores, como por exemplo, Martin Heidegger[5], Jacques Ranciére, ou Roland Barthes. Outro pensador que nos irá ajudar nesta viagem é Theodor Adorno, recorrendo ao seu texto Teoria Estética (1970). Este autor alemão, além de estabelecer uma crítica à estética (da obra de arte), também se preocupa com a dialéctica - arte e sociedade, ou seja, o impacto, ou recepção, que tem a arte na sociedade capitalista e consumista dos nossos dias.
Introdução à Estética da Recepção – Horizonte de Expectativas
Hans Robert Jauss encontra na escola marxista e na escola formalista[6] um ponto de partida, para uma história da obra literária e artística, estruturando desta maneira a Teoria da Recepção: «[...] a literatura e a arte só passam a pertencer a uma ordenação histórica organizada, quando a sucessão das obras não remete apenas para o sujeito produtor mas também para o sujeito receptor – para a interacção entre o autor e o público.» (Jauss, 1993: 48) - Por estas palavras, Jauss aponta o factor dinâmico das obras, criando uma espécie de trilogia dinâmica entre autor, obra e público, onde o sujeito receptor não é um sujeito passivo, mas, continua Jauss «[...] uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história.» (Jauss, 1993: 57) A história da obra – a história da estética – a história da arte.
Jauss concebe deste modo a relação entre leitor e literatura, ancorando-se no carácter estético e histórico da obra. Sendo o valor estético, comprovado através da comparação com outras leituras; e o valor histórico, por meio da compreensão da recepção de uma obra no momento da sua publicação: recepção do público ao longo do tempo.
A relação dinâmica entre leitor e obra, é encarada, nesta óptica, como uma construção – cultural e ideológica – previamente concebida por um conjunto de saberes. Ou seja, quando estamos perante uma obra, seja um livro, um filme, ou uma escultura, interagimos com essa obra por antecipação ou expectação[7]. Somos lançados numa espiral de memórias que poderão firmar-se pela atracção ou pela recusa: Por exemplo o género onde se insere, irá determinar a nossa relação com essa obra. O título poderá converter a aceitação de um tal livro, etc.. E é por esta dinâmica que Jauss define o Horizonte de Expectativas[8]. O académico alemão encontra na consciência colectiva uma base para este horizonte. Uma disposição geral de acolhimento à obra por parte do público. No entanto a variação do grau de horizonte de expectativas determina a “distância estética” estabelecendo “o carácter artístico de uma obra literária” (Jauss, 1993). Esta distância mede-se pela expectativa e pela obra nova, que pode mudar o horizonte - uma dimensão diacrónica, porque a mudança de horizonte pode não ser dada de imediato. Jauss por este enquadramento, debate-se contra a noção de intemporalidade, em favor de uma noção historicizante, ou seja, de um prolongamento na história através da essência da própria obra.
Em síntese, através do conceito de Horizonte de Expectativas, é-nos permitido fazer a história da obra, e não um historicismo. Uma perspectiva da temporalidade a partir da recepção – elaborada não apenas do acto de produção, mas, pela recepção (dos leitores) – de continuidades e rupturas – que envolve o que se dá a ver e está adstrito a alterações e mudanças, mediante o conhecimento prévio do leitor. Segundo Jauss o horizonte de expectativas resulta então de três factores fundamentais: A experiência prévia que o público tem com o género artístico a que a obra pertence, a forma e a temática de obras anteriores que esta obra pressupõe e por ultimo, a oposição entre a linguagem poética, mundo imaginário e realidade quotidiana.
Exposto isto, e para aquilo que nos interessa, para este texto, designamos as seguintes questões: Qual o horizonte de expectativas de «Über Räume und Völker»: «Sobre espaços e povos»? Ou, qual a implicação histórica da obra de Kiefer?
A Estética da Recepção em de «Sobre espaços e povos» de Anselm Kiefer
Iniciando a nossa leitura da obra do artista alemão, temos que levar em conta o livro que deu origem ao objecto final. Começando por delimitar e analisar o acto de recepção do próprio artista - traçando assim a constituição de um sujeito receptor (activo).
Numa primeira etapa, Anselm Keifer vê a sua atenção capturada pelo título da obra-primeira: «Räume und Völker in unserer Zeit, Ein geographisch-politisches Handbuch»: «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político»[9] (1963). Segundo declarado na entrevista, que se encontra no fim do nosso objecto de estudo, Kiefer afirma que se sentiu atraído pelo título, considerando que está lá tudo: estão os povos, está o espaço, estão os tempos. Mas, rapidamente se apercebeu que nada disso está lá dentro, afirmando que existia uma enorme discrepância entre o título e conteúdo. No entanto, em vez de rejeitar o manual, Kiefer aceitou a ruptura, criada pelo conteúdo do livro: Aquilo que nada é, pode tornar-se alguma coisa. E nada sendo, já é algo... Encontramos neste primeiro acto de recepção, o surgimento de um dos requisitos fundamentais que constitui o horizonte de expectativas: o próprio título da obra que caracteriza o contexto no qual o manual geográfico-político se insere, e toda a significação histórica. Reforcemos esta noção com as palavras de Hans Robert Jauss:
«Uma obra não se apresenta nunca, nem mesmo no momento em que aparece, como uma absoluta novidade, num vácuo de informação, predispondo antes o seu público para uma forma bem determinada de recepção, através de informações, sinais mais ou menos manifestos, indícios familiares ou referências implícitas. Ela evoca obras já lidas, coloca o leitor numa determinada situação emocional, cria, logo desde início, expectativas a respeito do «meio e do fim» da obra, que com o decorrer da leitura, podem ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou ainda ironicamente desrespeitadas, segundo determinadas regras de jogo relativamente ao género ou ao tipo de texto.» (Jauss, 1993: 66-67)
A obra que advém da intervenção artística, através de um processo de desconstrução, pode então ser encarada como uma resposta criativa e crítica às questões políticas que foram deixados pelo objecto anterior, e deste modo, levantar novos problemas, já que o contexto histórico em que Anselm Kiefer se insere, releva e provêm dessa problemática geopolítica. Resultado de uma relação de encadeamento, abre-se caminho para uma nova linguagem, uma nova fonte de sentido político[10].
«Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político», intervencionado em 1976, passou de um manual esquecido no tempo (matéria prima), a uma espécie de escultura textual e imagética (obra transformada). E se a recepção do manual tinha como destino sujeitos com conhecimento ou interesse em geopolítica, a nova obra do artista alemão dá origem a um novo horizonte de expectativas direccionado para um público diferente. Partindo do mesmo objecto, assistimos à mudança de leitores, e dentro do mesmo objecto: um manual didáctico torna-se objecto de arte[11].
A matriz do livro que se encontra nas nossas mãos foi exposto ao público pela primeira vez no Stadelschen Kunstinstitut em Frankfurt, entre Outubro de 1990 e Janeiro de 1991. De manual que pertencia ao campo do privado, passamos para uma obra de arte exibida na esfera pública. Este objecto transformado e exibida em público, além de se inscrever numa crítica à sociedade capitalista, pela noção de reaproveitamento, alcançando uma dimensão ecológica estética e criativa, é também portador de um sentido histórico no que respeita à transformação do espaço público e as suas implicações no acto de recepção. Ou seja, o objecto em causa é também reflexo da transformação de uma colectivização da leitura, e de uma transformação arquitectónica de espaços de leitura. A propósito do mundo subjectivo da arte em Habermas, João Pissarra Esteves diz:
«A diferenciação das ideias de mundo traz consigo uma correspondente autonomização de esferas de valor; respectivamente, para cada um dos mundos individualizados: a Arte, a Ciência, e a Moral (Política) – cada uma destas esferas de valor ancorada nos seus próprios sistemas de saber e processo de aprendizagem. A cada uma das ideias de mundo e esferas de valor podemos fazer corresponder, ainda, um conjunto de pretensões de validade e de critérios de validade próprios: a validade cognitiva (regulado pelo critério de verdade) para um mundo objectivo (ciência), a validade normativa (regulada pelo critério do justo) para o mundo social (moral-política) e a validade expressiva (regulada pelo critério da autenticidade) para um mundo interior subjectivo (arte).» (Esteves, 2011:179)
Por estas palavras sublinhamos a dinâmica na escolha de Kiefer – tendo sempre no horizonte, a recepção: De objecto de leitura do privado, assiste-se à transformação para um objecto de exibição pública. Dito de outro modo: há em «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político» um reflexo crítico da dicotomia privado/público - transformações da Esfera Pública.
Continuemos a nossa leitura, do que é agora um objecto artístico: Pelo traço visível na capa, somos indicados que se trata de um trabalho enigmático. Folheamos a obra e estamos na presença de linhas fortes, misturados com resquícios do manual. Um trabalho polimórfico que inscreve um simbolismo primitivo. Uma montagem fortemente conotada[12] exercida sobre os regimes de opacidade, onde imagem e texto se fundem e mapas insurgem re-escritos e reconfigurados pela mão do artista. Se o mundo é um livro para ser lido, Anselm Kiefer propõe um novo mundo e uma nova leitura – do mundo. Sob esta perspectiva podemos considerar que o Horizonte de Expectativas, que determina a recepção desta obra, é de elevado grau.
Englobando o limite do que se torna visível e invisível, o leitor-espectador desta obra é convidado não apenas ao estranhamento, mas ao questionamento, ou seja, um pensamento para além da estética[13]. No entanto, hoje o leitor-espectador funcionando tecnicamente numa sociedade de massas e de consumo, vivendo uma “inflação museológica” (Lipovetsky, Serroy, 2010), encontra esta tarefa de superação estética bastante complexificada: «Nas nossas sociedades, as obras funcionam como objectos de animação das massas destinados a diversificar os lazeres e a “matar” o tempo. O visitante do museu não procura uma experiência estética “pura”, mas sobretudo estímulos renovados, emoções secundárias que criam um tempo de recreação.» (Lipovetsky, Serroy, 2010: 132). O visitante do museu, ou o visitante da galeria, visto como um consumidor ideologicamente construído sob os parâmetros da sociedade de massas, depara-se com uma espécie de bloqueio para atingir a essência[14] da obra. Mas, levando em conta o trabalho que estamos a analisar, há um empreendimento no combate a essa fruição passageira. A recepção do trabalho de Kiefer deverá ser encarada como uma tentativa de desconstrução dessa inflação. A proposta para o leitor é a de ruptura com as características da sociedade de massa, no consumo de cultura. O objecto exposto na galeria - um livro – elabora uma proposta crítica à recepção. E a consubstanciação dessa crítica é a passagem de «Espaços e Povos no nosso Tempo, um manual geográfico-político», exibido na galeria, para «Sobre espaços e povos». O objecto-artístico abandonou a galeria e inscreveu-se de novo na esfera do privado. Fruto inevitável de uma reprodutibilidade técnica, hoje acedemos à obra e podemos contemplar o objecto em si[15].
Mergulhando neste livro-objecto, algo que ressalta é a sua composição de montagem. E como se tratasse de um palimpsesto[16], o que é dado é uma modernização nos modos lecturais. O que se vê são desenhos de corte e colagem. Algo que nos remete para a técnica de Cut-Up. Inicialmente uma técnica utilizada pelos dadaístas, de forma a criar um poema, derivado da escolha aleatória de palavras soltas. Mas, foi através de Brion Gysin e William S. Burroughs, que esta técnica adquiriu mais consistência na sua realização e intenção. A técnica de Cut-Up, segundo estes dois artistas, consiste em fragmentar um texto, e através de uma nova organização interna, cria-se outro texto, que segundo Burroughs poderia, inclusivamente, atingir uma dimensão profética. Burroughs numa entrevista publicada em The Third Mind (1978), afirma o seguinte acerca deste modo de montagem: «Cut-ups establish new connections between images, and one’s range of vision consequently expands. » (Burroughs, Gysin, 1978: 4).
Incorporando ao trabalho de Kiefer a intenção da técnica Cut-up, «Sobre espaços e povos», poderá servir de medium que expande a nossa visão sobre o mundo, sobre os povos e sobre espaços. Arquitectando no leitor uma “objectiva” crítica e política em resposta ao que é imposto pelo sistema capitalista e pela indústria cultural – uma ordem social. Contra esse sistema, corroboramos com as palavras de Adorno: «A arte é a antítese social da sociedade, e não deve imediatamente deduzir-se desta. A constituição da sua esfera corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte da sublimação.» (Adorno, 2008: 21). Na visão de Heidegger, para uma obra de arte funcionar, isto é, para que possa ajudar a focar e preservar um mundo de significado para um público, esta obra deverá manter uma tensão essencial entre o mundo de significados e o misterioso fenómeno da terra[17]. A obra de Kiefer, qual dispositivo de mediação, funciona deste modo em silêncio[18], mantendo uma espécie de santidade do decifrável dentro do próprio mundo de significados que ela transmite – num jogo de desvelamento – entre legibilidade e visibilidade, opacidade e transparência.
Considerando a obra de arte como um elemento de mediação, que estabelece um mundo de significados, no qual escolhas podem ser feitas, a implicação histórica[19] da obra de Kiefer passará, não (apenas) pelo artista, mas (principalmente) pela recepção e seus efeitos, nos leitores-espectador. Terminamos com as palavras de Marcel Duchamp:
«The creative act takes another aspect when the spectator experiences the phenomenon of transmutation: through the change of inert matter into work of art, an actual transubtantiation has taken place, and the role of the spectator is to determine the weigh of the work on the esthetic scale. All in all, the creative act is not performed by the artist alone, the spectator brings the work in contact with the external world by deciphering and interpreting its inner qualification and thus adds his contribution to the creative act. This becomes even more obvious when posterity gives a final verdict and sometimes rehabilitates forgotten artists.»[20]
Referências Bibliográficas:
Adorno, T. [1970] 2008. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70
Babo, M. 1993. A Escrita do Livro. Lisboa: Vega
Barthes, R. [1985] 2007. Elementos de Semiologia. Lisboa: Edições 70
Burroughs, W. [1970] 2010. A Revolução Electrónica. Trad. Maria Leonor Teles e José Augusto Mourão. Lisboa: Vega.
Burroughs, W. Brion G. [1978] 2010. The Third Mind. New York: The Viking Press.
Esteves, J. 2011. Sociologia da Comunicação. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Heidegger, M. [1977] 2005. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições 70
Inwood, M. 1999. A Heidegger Dictionary. Oxford: Blackwell Publishers Ltd
Jauss, H. 1993. A Literatura como Provocação: A história da Literatura como provocação literária. Lisboa: Vega
Kiefer, A. 1991. Über Räume und Völker. Frankfurt: Suhrkamp Taschenbuch
Lipovetsky, G. Serroy, J. [2008] 2010. A Cultura-Mundo – resposta de uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70
Rancière, J. [2008] 2010. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro
[1] William S. Burroughs em a: A Revolução Electrónica (1970)
[2] Damos uma ligeira enfâse ao sentido de mistério pelo facto de induzir uma espécie de suspense, presente no cinema e na literatura, e deste modo, na obra de arte, como algo que se vai revelando.
[3] Anselm Kiefer nascido a 8 de Março de 1945, em Donaueschingen, Alemanha, entrou para o mundo da arte no fim dos anos 60 do século passado. A década de 60 ficou especialmente marcada e caracterizada por um redução da arte em favor à ideologia, à filosofia, e até uma auto-proclamação xamânica por parte dos artistas. Algo que se compreende, já que Kiefer estudou sobre a alçada do artista alemão Joseph Beuys - acabando por influenciar profundamente o seu trabalho. A vasta obra deste artista passa pela fotografia, pela escultura, pintura e pelo design de livros: Kiefer intervêm directamente nos livros, criando um novo objecto.
[4] Não será nossa intenção fazer uma leitura visual página por página, mas sim um visão mais geral, analisando esta obra como objecto (de arte).
[5] Professor de Hans Robert Jauss
[6] Jauss iniciou a sua jornada partindo da escola marxista e formalista, mas é importante salientar, que os estudos de ambas as escolas eram limitadas, para uma Teoria da Recepção, no modo como consideravam o lugar do leitor. Vejamos as suas palavras: «A escola formalista apenas necessita do leitor como sujeito da percepção, cuja função é a de, seguindo as incitações do texto, discernir a sua forma e descobrir os seus procedimentos. […] Ao inverso, a escola marxista identifica a experiência espontânea do leitor com os interesses científicos do materialismo histórico que pretende descobrir na obra literária relações entre a super-estrutura e a infra-estrutura.» (Jauss, 1993: 56). Ou seja, a relevância ao leitor era como que secundária ou complementar.
[7] A expectação tem a ver, inserida na sociedade de massas, com questões de oferta e consumo. O kitsch, por exemplo, poderá ser encarado como um fenómeno onde a expectativa é bastante reduzida já que o seu propósito é o mero consumo e não a contemplação.
[8] Conceito axiomático para a Teoria da Recepção
[9] Este manual, que foi encontrado pelo artista num antiquário, apresentando uma compilação de mapas com pequenos textos descritivos, expondo a história mundial, o trânsito à escala global, os continentes e as divisões criadas pelo Pacto de Varsóvia - O Tratado de Varsóvia, assinado em Maio de 1955, estabeleceu uma aliança militar entre os países da Europa do Leste, sendo encarado como uma resposta à união entre a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América (NATO). A Alemanha, sobre este contexto, tornou-se uma representação desta divisão, dando origem ao muro de Berlim. No final da década de 80, as crises políticas na Europa do Leste, e queda do muro de Berlim, dão por terminado o período da Guerra Fria.
[10] Recorremos às palavras de Jacques Rancière em O Espectador Emancipado (2010): «[...] a rotura estética que instalou uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma rotura da relação entre as produções das diversas modalidades artísticas de saber-fazer e fins sociais definidos, entre formas sensíveis, as significações que nelas podemos ler e os efeitos que podem produzir. […] É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por esta via que a arte, dentro do regime da separação estética, toca a política.» E é pela ruptura estética que o trabalho de Kiefer adquire uma dimensão eminentemente política. (Rancière, 2010: 89)
[11] Este tornar-se arte, justificamos com as palavras de Adorno em Teoria Estética (2008), remetendo também para o carácter histórico e premonitório das obras de arte: «A definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se.» (Adorno, 2008: 14)
[12] Roland Barthes em Elementos da Semiologia (2007), ajuda-nos a compreender este meio conotativo no trabalho de Kiefer: «[...] o primeiro sistema constitui então o plano de denotação e o segundo sistema (extensivo ao primeiro) o plano de conotação. Portanto, dizemos que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é ele próprio constituído por um sistema de significação; os casos correntes de conotação são constituídos evidentemente pelos sistemas complexos em que a linguagem articulada forma o primeiro sistema (é, por exemplo, o caso da literatura).» (Barthes, 2007: 87-88) O semiólogo francês continua «Quanto ao significado de conotação, esse tem um carácter simultaneamente geral, global e difuso: é, [...], um fragmento de ideologia – [...]; a ideologia é em suma a forma (no sentido hjelmsleviano) dos significados de conotação, [...].» (Barthes, 2007: 89-90), ou seja, a conotação é uma construção cultural, e através de uma re-construção visual e gráfica, Kiefer propõe algo de novo.
[13] Para Martin Heidegger uma das suas preocupações (crítica) é o modo como a estética nos poderá moldar. Heidegger pensa que só um pensamento pós-estética sobre a arte nos pode permitir reconhecer e restaurar o verdadeiro significado da arte, ajudando-nos a conferir como a arte trabalha para moldar o nosso sentido básico do que é e o que importa.
[14] Heidegger em A Origem da Obra de Arte (2005) diz: [...] a pergunta pela origem da obra de arte converte-se em pergunta pela essência da arte. Mas porque tem de se deixar em aberto a questão de saber se e como a arte em geral existe, tentaremos encontrar a essência da arte onde, sem sombra de dúvida, a arte efectivamente reina. A arte encontra-se na obra de arte.» (Heidegger, 2005:12)
[15] Maria Augusta Babo, em A escrita do livro (1993) afirma o seguinte acerca do carácter reprodutível do livro: «Ao torna-se impresso, o livro privatiza-se, isto é, deixa de estar unicamente depositado nas bibliotecas, lugares-comuns, para integrar o conjunto de bens do espaço burguês. Esta privatização implica uma cada vez maior individualização da percepção da escrita de modo a fazê-la coincidir total e definitivamente com a concepção actual da leitura, fenómeno que marca a modernidade, [...] (Babo, 1997: 19) – Kiefer ao propor a reprodução do seu trabalho convida o leitor-consumidor a entregar-se calmamente à leitura. Um convite crítico ao consumo exacerbado
[16] Palimpsesto era o resultado de uma técnica de aproveitamento de papiro, tendo em conta o elevado custo deste suporte na Idade Média.
[17] Heidegger contrapõe Terra a mundo: «A world of human products and activities is established by taming and utilizing the Earth on which it rest. [...] Earth is revealed as Earth by the world» (Inwood, 1999: 50).
[18] A leitura “silenciosa” permite uma leitura rigorosa, tal como era praticado nos Mosteiros, como um exercício de meditação e abstinência. Embora nos nossos dias, deva ser inserida no contexto de uma leitura moderna, ou seja, uma leitura que se privatizou.
[19] Trazemos aqui as palavras de Hans Robert Jauss: «A implicação histórica manifesta-se no facto de a interpretação dos primeiros leitores se poder desenvolver e enriquecer, de geração em geração, constituindo uma cadeia de recepções, que decidirá sobre a importância histórica de uma obra e sobre o seu destaque estético» (Jauss, 1993: 58)
[20] Palestra ministrada por Marcel Duchamp, intitulada The Creative Act (1957) – consultada on-line em: http://www.cathystone.com/Duchamp_Creative%20Act.pdf